Gatos são nossa casa

Ontem me despedi de um companheiro de 14 anos. Aurélio, também conhecido como Aurelião, Aurelioba, Aureliano, Aureliano I, Aureliano Buendía, Vampirinho, Batiminha, entre outros epítetos. Era um dicionário inteiro. Falador, cheio de opiniões. Um gato culto, viajado, durão, exigente, mas muito gentil. Viveu tranquilamente mais que 7 vidas. O maior gentleman que já conheci. Um gato resgatado das ruas, mas que sempre foi majestade. Foi um príncipe até o final.

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Aurélio chegou na minha vida no momento em que me tornei uma mulher independente. Eu estava na faculdade, já pagava minhas contas, morava sozinha numa kitnet. Agora ninguém pode me dizer que não posso ter gatos! Ele me acompanhou em cada mudança de casa, de carreira, de cidade, de país. Rever a vida dele é rever quanta coisa mudou na minha. Me tornei tantas pessoas nesse meio tempo. E ele amou e protegeu e cuidou de cada uma das minhas versões. 

Eu costumava brincar dizendo que ele era meu bedelzinho. Me lembrava de beber água, reclamava se eu ficava tempo demais na frente do computador, mandava abrir as janelas com alguma frequência, porque amava levar ventão na cara. Me acordava todos os dias às seis da manhã, com miados insistentes e patadas na cara, me beliscando de leve com suas garrinhas, e só aquietava quando eu levantava aos resmungos para colocar comida para ele. Ele formava uma dupla perfeita com Eugênio. Um apolíneo, outro dionísico. Aurélio era o que nos colocava nos eixos.

Quem vai me acordar agora? Se depender do Eugênio, nem saio da cama. Acordar sem o Aurélio parece uma eterna madrugada. Não está na hora ainda. Mas está. Que horas são? Perdi a noção do tempo. Ele era meu relojinho. Não, ele era minha casa.

De todas as nossas mudanças de endereço, era a partir da presença dos gatos que podíamos nos sentir em casa. É como instalar um sistema, que vem com uma rotina, horários, prestar atenção nas janelas, pensar se as portas estão fechadas, se não há copos cheios de água dando bobeira sobre a mesa. Gatos chamam atenção para o espaço em que vivemos.

E como o Aurélio ficava satisfeito depois que fazíamos uma boa faxina na casa. Gostava de chão de limpo, de deitar em cobertas perfeitamente dobradas.

O último lugar que ele gostou de deitar foi no corredor, onde o piso é mais quentinho. Até seus últimos dias, ele ficou feliz em morder meus dedos do pé quando eu chegava em casa e tirava os sapatos. Um dia antes de partir, ele me pediu para abrir as portas e ventilar a casa, como sempre fez, e pediu para passear no quintal que ele amava, onde mordeu suas plantinhas como se fosse verão, embora fizesse -5ºC do lado de fora.

De um dia para o outro, nossa casa encolheu.

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Os antigos egípcios é que estavam certos em mumificar seus gatos. Se eu acreditasse em vida após a morte, eu também ia querer voltar e abraçar o Aurélio de novo. Que erro imperdoável da natureza é gatos não viverem mais que humanos.

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Obrigada, Aurelião, por ter cuidado de nós por tanto tempo. Você vai continuar morando aqui dentro.