Pobres criaturas: fábula rasa

Tabula rasa é uma ideia que já era discutida desde a Grécia Antiga, quando um monte de homens de toga se questionava se a mente humana nascia como uma folha em branco, sendo preenchida e moldada pelas experiências vividas no mundo. Como na época não existia folha de papel, o termo fazia referência a uma tábua de cera que era usada pelos antigos para fazer suas anotações, uma espécie de tablet orgânico.

Quem se empolgou muito com essa ideia de tabula rasa foi o filósofo John Locke, que preencheu várias e várias folhas de papel para provar seu ponto: o ser humano nasce com uma mente lisinha, zerada, e o desenvolvimento do conhecimento e de suas características individuais se dá por meio das experiências vividas e dos estímulos sensoriais que ela vai encontrando no caminho.

O tempo passou e essa teoria foi refutada de vários ângulos, a partir das novas descobertas da ciência, tanto no estudo do cérebro, quanto da evolução e do desenvolvimento humano. Este artigo muito interessante do neurologista espanhol Francisco J. Rubia demonstra por que essa teoria é uma furada. 

Mas você clicou nesse texto querendo ler sobre cinema, certo? E, no campo da ficção, é possível ter a liberdade de especular: beleza, mas e se a mente for mesmo uma tabula rasa? É o que o filme Pobres Criaturas (em inglês, Poor Things) se propõe a mostrar, através da fábula de uma mulher adulta que se mata e é trazida de volta à vida dotada do cérebro de um bebê, podendo experimentar o mundo, seu corpo e as relações com as outras pessoas sem concepções preestabelecidas, tal qual uma folha de papel sulfite recém-saída da resma. 

Essa condição fantástica da personagem é um prato cheio para colocá-la em situações em que ela não sente culpa, vergonha ou medo da mesma forma que uma mulher adulta normal experimentaria. Uma forma de mostrar, com um visual tão estonteante quanto alegorias carnavalescas, que o ser humano nasce puro, a sociedade é o que o corrompe. Ou melhor, que a mulher nasce livre, é o homem que a aprisiona.

O problema é que fui ao cinema carregando meu cérebro rodado e já severamente desgastado por mais de 30 anos de experiências narrativas, o que prejudicou a correta apreciação do filme como inovador, se já vi essa história ser contada tantas vezes. Além disso, sentei diante da tela já influenciada pelas expectativas criadas pelas pessoas — a pior coisa para se levar a uma sala de cinema. Tinha ouvido comentários bem empolgados de pessoas que assistiram, via em todo canto o filme ser definido como um Frankenstein feminista, seja lá o que isso signifique, e sempre acompanhado de palavras como liberdade!, empoderamento!, autodescoberta feminina!, de uma forma que eu só tinha visto até então ser usada para vender absorvente. 

Sim, o filme tem uma estética deslumbrante. Cada cena é um grito: “aqui tem qualidade de produção, quiridaaa!”. O trabalho de figurino, assinado por Holly Waddington, é um esculacho de bom, ouso dizer que o ponto alto do filme. Os atores, em especial Emma Stone e Mark Ruffalo, entregam um trabalho de corpo impecável, tão expressivo quanto palavras. A trilha sonora é de uma estranheza gostosa para os ouvidos. A ambientação steampunk faz a imaginação borbulhar. As cenas são um parque de diversões para os sentidos, com destaque para o passeio em Lisboa, conseguindo transmitir para quem assiste a perspectiva de maravilhamento de Bella Baxter diante daquele mundo tão inédito para ela. O filme é divertido, pelo menos até certo ponto, quando começa a ficar repetitivo. Aí entra o ponto fraco de Poor Things, na minha opinião: um roteiro plano, linear, com soluções meio bobas, habitado por personagens bidimensionais. O filme é ele próprio uma analogia para a condição inicial de Bella Baxter: um corpo bem formado (e belíssimo!) com um cérebro ainda pouco desenvolvido.

Ouvi de algumas pessoas que me recomendaram o filme: melhor nem te contar nada da história, você tem que ver! Eu, que sou trouxa e às vezes caio nesse argumento tchongo de quem é contra spoiler, fiquei esperando que a história em algum momento fosse trazer alguma reviravolta, algo que desviasse a rota para um caminho inusitado, levar os personagens para outra camada, e por isso não queriam me contar, mas a história não dá “saltinhos furiosos” para além do que a sinopse entrega. É a jornada de Bella Baxter descobrindo como a vida funciona, ponto. Até aí tudo bem. O brochante foi descobrir o que o filme apresenta como uma jornada de descobrir como a vida funciona.

O começo é até interessante, mostrando a personagem no processo de aquisição de linguagem e desenvolvendo coordenação motora. Mas a partir do momento em que a personagem descobre o prazer sexual, sua motivação se reduz a buscar mais prazer. Por mais que o filme mostre Bella como um ser em constante desenvolvimento (o roteiro repete a palavra “improving” com muita frequência, para que o espectador burrinho não tenha dúvidas disso), a personagem fica fixada em um único aspecto, repetitiva como aquele refrão que diz EU QUERO GOZAR… a vida com você! Para uma personagem que vive enunciando que quer sair pelo mundo, ela passa tempo demais dentro de um quarto. Muita gente parece ter se incomodado com as cenas de sexo, que em si, não são nada chocantes. O que me incomodou foi o filme centralizar no sexo essa experiência de descobrir o mundo e os sentidos, o que me fez ter sérias dúvidas se estou fazendo certo esse negócio de ser mulher, se não estou xerecando mundo afora.

Bella aprende coisas novas, claro, mas sua personalidade ingênua e hedonista permanece impermeável aos estímulos que recebe do mundo. Estar cercada de tantos personagens masculinos bidimensionais, que se apresentam em uma única nota, de forma bem caricata, não ajuda a pobrezinha. Para um filme que fala sobre descoberta e aprendizado, ele abre mão de mostrar a construção da personagem em qualquer aspecto que não seja trepar, de modo que algumas coisas parecem surgir meio de repente. Por exemplo, a cena em que Bella descobre a miséria em Alexandria parece completamente deslocada. A personagem, que até então era mostrada como insensível a tudo que não envolvesse a satisfação do seu prazer, de repente é acometida de consciência social, de empatia, de vontade de ajudar os pobres. Afinal, ela tem que ser uma heroína! Como diria Rita Lee: “Ah, ela é tão boazinha, ela é tão do bem, ela é tão galera! Ah, vai se foder, né? Chata paca!” 

Tudo bem, o filme precisa se apressar de vez em quando. Por isso é muito conveniente que o desenvolvimento cognitivo da personagem se dê de forma acelerada, representada visualmente pelo crescimento rápido do seu cabelo. Imagina, deusolivre de ver uma personagem adquirir maturidade sexual em um corpo mais velho. Tem que dar tempo de ver Bella cavalgar em homens com seu corpo jovem, belo, esbelto. Não por acaso as duas mulheres mais velhas do filme são mostradas como praticamente assexuadas. Uma delas, a dona do bordel, chega a ser representada quase como uma atração de freak show, que precisa explorar o trabalho de outras meninas, já que não é mais considerada sexualmente atraente. Novamente, o sexo (e a ausência dele) no centro da experiência feminina.

Outro momento que me pareceu acelerado: quando ela começa a ler livros de filosofia e eu me peguei pensando: “peraí, mas quando ela aprendeu a ler?”. Ah é, tem uma cena em que Max apresenta um mapa-mundi para ela e ensina algumas palavras, enquanto Bella está mais preocupada em encher a boca de guloseimas. Ok, dá pra entender que ela é alfabetizada em algum momento, quem é que quer assistir cenas da personagem aprendendo a ler e escrever? Chato! Pula logo para alguma cena em que ela mostra os mamilos, poxa.

Pobres criaturas tem uma premissa parecida com o de muitos filmes além de Frankenstein, e o primeiro que me veio à mente foi O enigma de Kaspar Hauser, de 1974, dirigido por Werner Herzog (o título original, em alemão, Jede für sich und Gott gegen allen, que significa “cada um por si e Deus contra todos”, foi tirado de Macunaíma, obra de Mário de Andrade). Assisti a esse filme nos primeiros semestres da faculdade de Comunicação (faz 84 anos) e valeu a pena ver de novo depois de ter visto Pobres criaturas, o que me fez perceber alguns paralelos entre os dois.

O enigma de Kaspar Hauser é baseado em uma história real de um rapaz que aparece na cidade de Nürnberg, na Alemanha, sem saber andar, nem falar, apenas segurando uma carta, que explica que ele tinha 17 anos de idade e tinha vivido até então acorrentado em um porão, sem contato com nenhuma pessoa. Ele é libertado do cativeiro por um homem misterioso que o ensina a escrever seu próprio nome e a decorar as seguintes palavras: “quero ser um cavaleiro, como o meu pai foi”, embora o pobre Kaspar não faça ideia do que isso signifique.

Mesmo sem dispor de efeitos especiais ou de um elenco hollywoodiano (o ator que interpretou Kaspar e entregou uma atuação incrível nessa sua estreia no cinema era um músico de rua, filho de uma prostituta, que tinha passado por diversas instituições mentais e até foi objeto de experimentos nazistas com crianças com deficiência mental), Werner Herzog consegue mostrar de forma muito tocante essa jornada de um personagem em uma condição animalesca de isolamento até seus aprendizados e desencaixes nas tentativas de se integrar à sociedade (spoiler: ele não consegue, ao contrário de Bella, que tem seu final “felizes para sempre” na Barbielândia da Wandinha Addams). As cenas que em Pobres Criaturas parecem ser uma perda de tempo, na história de Kaspar Hauser ganham o maior foco. Sim, cenas de um personagem lendo e escrevendo, aprendendo com uma criança as palavras para cada parte do corpo, tentando descobrir como manusear uma colher, podem ser muito emocionantes.

Achei curioso como ambos os filmes têm cenas com alegorias bíblicas, como a cena da maçã, em um contexto onde simboliza, de alguma forma, aquisição de conhecimento. Em Pobres criaturas, Bella, por ainda não saber o que é uma maçã, testa suas possibilidades. O raciocínio incomum da personagem em relação à fruta: olha, dá para esfregar na priquita e sentir coisas legais! Eu gosto mesmo de como essa cena relê o episódio de Adão e Eva de uma forma bem literal, o que dá a ela um efeito cômico. 

Já em O enigma de Kaspar Hauser, depois de fazer questionamentos impróprios na catequese, os padres levam Kaspar para o pomar e apresentam a ele uma maçã. O raciocínio incomum do personagem em relação à fruta: a maçã está viva e é inteligente! Os padres tentam convencer Kaspar que não, que aquilo é um objeto inanimado, veja, vou jogá-la no chão. E Kaspar vê aquilo como uma prova de que ela é esperta e intencionalmente quicou por cima do pé do padre. Esse me parece um pensamento muito menos óbvio, uma forma não-linear de ver o mundo, para representar um personagem que não compartilha do senso comum, que chega a conclusões inesperadas. Foi precisamente isso o que me entristeceu em Bella, a previsibilidade de ter seu pensamento conduzido pelo sexo.

O roteiro de Pobres Criaturas, escrito pelo australiano Tony McNamara, foi baseado no romance do escocês Alasdair Gray, cujo título original é Poor Things: Episodes from the Early Life of Archibald McCandless M.D., Scottish Public Health Officer, ainda sem edição brasileira.

O filme não me deixou louca de curiosidades para ler o livro, se apresenta uma história que me pareceu pobre, ao menos, uma versão pobre de uma história que capaz de ser bem mais interessante em sua versão literária — como costuma ser um padrão nos casos de adaptações audiovisuais a partir de livros. Sei bem que o que faz uma história pulsar não são as coisas que acontecem, mas sim a forma de contar o que acontece. Isso muda tudo.

Logo, preciso dar uma de Gloria Pires e dizer que não sou capaz de opinar se a história original é ruim ou se o defeito é o roteiro preguiçoso. Tudo o que sei sobre o livro é que ele é narrado do ponto de vista do estudante de medicina que trabalha com o cientista maluco que traz o cadáver de uma mulher de volta à vida, o que seria o Max, na versão do cinema. Encontrei aqui um áudio do autor lendo dois capítulos, em inglês, óbvio, para quem quiser ter uma amostra do livro.

Uma história que parte de uma premissa tão conhecida, e tão genialmente executada por Mary Shelley há mais de século atrás, precisa apresentar algo que vá além da história que a inspirou, subvertê-la, mostrá-la de uma nova perspectiva, o que não acho que esse filme que se vende como uma “versão feminina” de Frankenstein ou o Prometeu Moderno consegue fazer. Quanto ao livro, ainda não sei, um dia volto para contar. Já sinto que as chances de me decepcionar são grandes: vou estar lendo uma história que se “parece” com Frankenstein, me perguntando, por que não, em vez disso, reler o Frankenstein original, que não se esgota em profundidade narrativa, e que, pasme, foi escrito por uma mulher feminista? A régua é alta, hein.

Para concluir, preciso torcer o braço e dizer que Pobres Criaturas, o filme, tem a qualidade de permitir leituras muitas diversas. Da mesma forma que apresenta vários elementos para ser interpretado como um filme sobre empoderamento feminino, me mostrou vários elementos que podem ser interpretados como o contrário disso, o que é perfeito para gerar textos bem polarizados que alavancam a divulgação do filme (vide eu fazendo isso aqui de graça, pois não me canso de ser trouxa!). 

Por exemplo, questiona o tabu que fazemos do sexo e da prostituição. Por outro lado, é a história de uma mulher que rejeita a maternidade a ponto de tirar a própria vida, que tem seu corpo usado contra seu consentimento em um experimento científico, o cérebro substituído pelo de um feto, como se fosse uma histérica sendo lobotomizada para ser “curada” e assim reaprender a gostar de sexo. Sim, o filme mostra uma mulher aprendendo a ter agência sobre o próprio corpo. Por outro lado, o filme confirma tanto a teoria da tabula rasa, que mostra a personagem jamais se lembrando das suas experiências passadas como Victoria (que é ela mesma e sua própria mãe), a qual ela só tem acesso por meio da narrativa dos homens ao seu redor.

Sei que ao trazer essas críticas posso cair no balaio de pessoas antiquadas que se incomodam com sexo, buuuu! ou de chata do caralho que não consegue se divertir com um filme lúdico e divertido (às vezes sou mesmo, embora tenha me divertido com Barbie!), mas ainda espero que um filme, especialmente um tão exaltado e com grandes chances de levar o Oscar, estimule o órgão que trago entre as orelhas, para usar as palavras de Martha, a senhora que Bella conhece no navio. E isso fica um bocado difícil quando acredito que a experiência de estar viva — e de ser uma mulher — pode ir muito além do fato de possuir uma vagina.


Eu poderia ir além e criticar outros aspectos do filme, mas prefiro deixar aqui outros dois ótimos textos sobre Pobres criaturas

#chateada