Quando resolvi escrever um romance sobre o oceano, sabia que estaria lidando com o desconhecido, com um ambiente hostil, com um mundo cheio de segredos. O mar dá medo. Esse me parece justamente o melhor motivo para escrever: eu não escreveria sobre algo que não me perturbasse ou me apavorasse em algum nível.
O oceano é só um exemplo entre tantos cenários tão assustadores quanto fascinantes: montanhas, cavernas, florestas, desertos, pântanos, a galáxia, aquele pote de comida que ficou há tanto tempo guardado que dá até medo de abrir. Não deixa de ser um pequeno universo habitado.
É como se a natureza ameaçasse nos invadir pelas menores frestas dessa realidade segura que construímos para nós; tentasse vazar a qualquer instante para dentro desses ambientes controlados em que podemos criar a ilusão de que, ei, está tudo sob controle, olha que civilizados e limpinhos nós somos, sabemos o que está acontecendo.
Não sabemos.
Quando descobri o tal livro As Mulheres que Correm com Lobos, da psicanalista Clarissa Pinkola Estés, me incomodou a simplificação de relacionar a natureza em seu estado bruto ao feminino, como ela escreve: “Não importa a cultura pela qual a mulher seja influenciada, ela compreende as palavras mulher e selvagem intuitivamente”.
Mas preciso concordar que a natureza e as mulheres têm muito em comum quando se trata da tentativa de domesticá-las, controlá-las, destrui-las.
Na literatura, essa associação às vezes aparece em camadas mais profundas da história; pensando bem, até no livro que escrevi.
Na ficção é possível encontrar o tema de forma bem mais sutil e menos estereotipado do que no livro da psicanalista, e um dos exemplos que me vêm à mente é este livro de contos da Margaret Atwood, uma de minhas autoras favoritas:
Dicas da Imensidão (ou Wilderness Tips, no original) foi escrito em 1991.
O livro traz dez narrativas, centradas em mulheres de diferentes realidades, ambientadas em muitos cenários selvagens: acampamentos, um brejo, uma casa de campo, a redação de um jornal nos anos 90. Sabe, esses lugares cheios de animais perigosos.
Em uma das histórias, um personagem encontra na casa de veraneio da família da esposa um livro antigo com dicas para sobreviver no mato, com instruções de como pegar animais em armadilhas, acender fogueira debaixo de temporal, construir abrigos, encontrar plantas comestíveis, basicamente o que se faz jogando Tomb Raider (Lara Croft é literalmente mulher que corre com os lobos).
Como se chama o livro que ele encontra? Dicas da Imensidão. Isso acaba dando a pista de que estamos diante de histórias selvagens, de luta pela sobrevivência, de um mundo cheio de ameaças, ainda que em muitos momentos as personagens estejam no centro de Toronto.
No conto “Tios”, por exemplo, essa luta selvagem está representada pela competitividade do mundo corporativo, em que uma jornalista bem-sucedida precisa lidar com as consequências da inveja de um ex-colega de trabalho. It’s a man’s world, afinal.
Não faltam cenários pitorescos nos contos, ainda que seja a natureza típica da América do Norte, mas a hostilidade e o desconhecido não estão exatamente do lado de fora.
“Morte por paisagem” aponta o caminho. É a história de duas amigas numa colônia de férias, e da viagem de canoa que fizeram quando adolescentes. Elas fazem brincadeiras, têm pequenas briguinhas, conversas ao redor da fogueira, toda aquela coisa de acampamento. Em um momento, o grupo vai fazer uma trilha e as duas acabam se distanciando das outras garotas por motivos de parada para o xixi. Em uma questão de segundos, quando a amiga se vira de costas para esperar, a outra some. Desaparece. Puf.
Isso gera todo um conflito, a busca desesperada pela garota, Lucy, que nunca é encontrada. Décadas depois, vemos a amiga, Lois, olhando para quadros de paisagens que tem em seu apartamento. Há uma foto com o mesmo lago que atravessaram de canoa naquele dia fatídico. Em cada um daqueles quadros ela vê o retrato da amiga desaparecida, ainda que ela não esteja lá:
“Quem sabe quantas árvores havia no penhasco antes de Lucy desaparecer? Quem contou? Talvez houvesse mais uma, depois.”
Da mesma forma que ela enxergava a amiga nas paisagens, neste livro é possível olhar para as mulheres e ver a natureza selvagem. Ora hostis, ora imprevisíveis, sempre com algo escondido, que não se pode ver da superfície — como o oceano ou uma floresta bem densa.
Aliás, em mais de uma história há coisas enterradas e escondidas. Em “O homem do brejo”, há uma expedição para investigar um homem de dois mil anos encontrado afundado num pântano. Em “A era do chumbo”, um homem esteve enterrado por 150 anos no gelo. Em “Ísis na escuridão”, um escritor frustrado tenta refazer os passos de uma brilhante poeta que ele conheceu na juventude e que o marcou para sempre — é quando ele percebe que nunca pôde ser o Osíris dela, mas um mero arqueólogo, desenterrando a história dessa artista.
São sobretudo as mulheres que enterram e escondem seus segredos. Katherine guarda num pote de vidro um cisto retirado de seus ovários — algo parecido com uma bola de cabelo — e o ouve sussurrar coisas que jamais queria ouvir sobre si mesma. Ou Ronette, que nunca revelou quem a engravidou durante o verão em que trabalhou de garçonete numa colônia de férias. Ou Prue, que esconde que transa com o marido da irmã, Portia, que por sua vez finge que não sabe do caso dos dois.
É o oculto em nós que costura as histórias neste livro de Margaret Atwood.
Como em seu romance O conto da aia, em que a narradora esconde pedaços de manteiga dentro dos sapatos para depois hidratar as mãos e se sentir mais humana, apesar da situação opressora em que se encontra lhe negar isso, em Dicas da Imensidão também aparecem esses pequenos segredos aqui e ali que, quando revelados, mostram outras facetas das personagens.
Porque se a imensidão se estende para fora, também se estende para dentro. Somos nós essa imensidão — e a literatura é a tentativa de capturar essa profundidade. É onde podemos ver esses pequenos detalhes que, mesmo quando desagradáveis ou contraditórios, mostram que nunca somos uma coisa só, planas, bidimensionais. Nem santas, nem vítimas, nem as super heroínas que resolvem tudo sozinhas.
Como uma paisagem, somos repletas de camadas sobrepostas, que em algum momento se adensam demais e não permitem que se veja além — aquele ponto da fotografia em que a água se torna escura demais, ou que há tantos galhos emaranhados que nem mais a luz consegue passar.
Acampando na floresta, ainda podemos contar com os ensinamentos de livros com dicas de sobrevivência no mundo selvagem. Podemos aprender a caçar, acender fogo, construir um abrigo para nos proteger da chuva e de sabe-se lá o que esteja à espreita. Quando nos perdemos na paisagem dentro de nós, não há abrigo que nos proteja. A imensidão dá medo, mas às vezes não temos outra escolha se não mergulhar nela.
Do meu conto favorito, “Peso”:
“Estou ganhando peso. Não estou ficando maior, apenas mais pesada. Isso não aparece na balança: tecnicamente, continuo a mesma. Minhas roupas ainda me vestem bem, de modo que não é o tamanho, o que eles dizem sobre gordura ocupar mais espaço do que músculos. O peso que sinto está na energia que consumo para me locomover: andar pela calçada, subir a escada, ao longo do dia. Está na pressão em meus pés. É uma densidade das células, como se eu bebesse metais pesados. Nada que se possa medir, embora existam as pequenas protuberâncias de carne habituais que precisam ser tornadas mais firmes, mais musculosas, mais trabalhadas com malhação. Trabalhada. Tudo está se tornando trabalhoso demais.”
— Margaret atwood, “dicas da imensidão”
Texto originalmente publicado em fevereiro de 2017, no Medium.