Um ano e meio longe do Brasil acreditando que o que eu mais sentia falta era da comida. Quando volto, percebo que estava mesmo faminta do meu idioma. Estranho sentir falta de algo que uso todo dia.
Talvez seja saudade de ouvir português mesmo quando não quero, cercada de vozes que entendo o que dizem e por isso tão insuportável ouvir o tempo inteiro, como se de repente eu pudesse ler mentes. Telepatia é nada mais que isso: entender.
Talvez seja saudade do português nas placas, nos cardápios, nos livros. Encher a mala de cachaça e livros em português, tudo o que não posso substituir, tudo o que não se acha fácil na Alemanha.
Aproveitar para buscar livros que estão há mais de ano esperando por mim. Corri para abrir o Kafkianas da Elvira Vigna. Estava doida para ter esse nas minhas mãos. Um diálogo de Elvira com os contos de Kafka. Todo ilustrado pela autora. Os títulos originais em alemão, ao lado do título em português. Literatura em português e em alemão, conversando, no meu território.
E a conversa é a seguinte: a Elvira dizendo o que acha que significa a simbologia das histórias doidas de Kafka. Não o que significava para ele. Mas o que pode significar para quem está olhando daqui. Pelo menos é minha interpretação. Ela sempre coloca “você” no lugar dos protagonistas.
“Tem um médico, lá longe e há muito tempo.
Então relaxa: essa história não tem nada a ver com você.
Ou será que tem?”
Elvira vigna, “kafkianas“
Tem um conto do Kafka em que o narrador-protagonista está em um prédio, que ele não sabe bem se é um tribunal de justiça ou se é uma biblioteca, mas ele fica ali vagando porque precisa encontrar um advogado, ou uma coleção de advogados. Ele também não sabe exatamente pra quê.
No Kafkianas, a Elvira Vigna interpreta que quando Kafka diz “advogado”, quer dizer “narrador”. Ela cata isso pelo título do conto, em alemão, Fürsprecher, que é uma palavra para advogado, mas literalmente significa aquele que fala por alguém.
Faz muito sentido quando no conto ele fala que o advogado (narrador) é necessário em todos os lugares, talvez não tanto na corte, mas na vida.
Às vezes ficamos igual esse pobre coitado do conto tentando achar um narrador que nos defenda, que justifique por que fazemos as coisas do jeito que fazemos. Ou um que faça esse caos todo das nossas experiências e memórias e relações com o outro fazer algum sentido. Ou parecer que faz. Porque se não conseguimos mudar as escolhas, pelo menos o narrador, ou a perspectiva de que se narra, sempre dá pra mudar.
No final do conto, o sujeito percebe que passou tanto tempo zanzando nesse lugar esquisito, que fica pensando: “putz, mas eu não posso voltar atrás a essa altura, admitir que peguei o caminho errado seria insuportável pra mim”. E aí o protagonista diz, no momento em que talvez se percebe, ele mesmo, o narrador que procurava: “Se você começou a caminhar, continue não importa o que aconteça. Desde que você não pare de subir (as escadas), os degraus não vão acabar”.
O narrador inventa um jeito de fazer sentido essas escadarias que resolvemos subir, mesmo sem saber onde vão dar. O joelho que aguente.