“Tomaria um cafezinho comigo?”
Foi a pergunta que usaram para abrir tuítes que traziam, logo abaixo, uma lista de informações pessoais que parecem cruciais para descrever a pessoa que perguntou: altura, signo, onde sente cócegas, nome da avó, que número calça, cor do cabelo, que tipo de mensagem gosta de ignorar. De alguma forma, importa saber tudo isso para decidir sua companhia para um café.
Entregar meus dados de graça para empresas me venderem produtos? Jamais! Entregar meus dados de graça para tentar buscar talvez quem sabe se os ventos ajudarem um afago virtual? Opa, vamos nessa. Afetos before boletos.
Digamos que sim, que com base nesse seu jeitinho todo especial, alguém responde que tomaria esse cafezinho com você. Mas esse alguém, no caso, é sua persona digital. Aquela que você vende em seu avatar misterioso e em posts caprichados e no seu histórico profissional e nas informações que você compartilha online. Um encontro com a versão que você apresenta na internet.
A pergunta toma caminho inverso. Você tomaria um cafezinho com a sua persona?
Não que essa versão contada pelas telas seja necessariamente uma fraude, ou uma completa ficção. Está mais para uma faceta. Incompleta, pelas limitações do espaço (é mesmo difícil enfiar todas as nossas dimensões em recipientes como caracteres e bytes e imagens feitas para desaparecer no dia seguinte). Imprecisa, pela facilidade em fazer a curadoria (decidir o que queremos mostrar, o que queremos esconder e o que queremos exagerar). Tem você ali, mas acaba sendo um você diferente.
Talvez esse encontro te intimide. Um medo da porra de passar vexame, de dizer algo que essa outra versão de você possa problematizar. Ou gongar com seu humor ácido. Ou talvez seja ela quem trave, porque tem uma imagem a zelar. Talvez perto dela, você tenha pouco a dizer. Ou não: é a sua persona que fica apenas calada, observando, ouvindo. Passivona.
Você seria uma companhia agradável para você? Talvez vocês se encantem e surja uma linda amizade. Ou um diálogo confuso e altamente narcísico, feito Paul Rudd conversando consigo mesmo. “Olha só pra nós”, você diria com brilho no olhar. “Olha só pra nós!” você responderia em êxtase.
Pode ser estranho, desconfortável. Encontro de sair faísca, algo mais parecido com duelar com a própria sombra. Uma esgrima onde ninguém se acerta porque reflete com exatidão o movimento um do outro, feito um espelho.
Ou quem sabe divertido perceber que:
(A) ninguém liga para a sua imagem tanto quanto você. As outras pessoas também estão mais interessadas em se olhar no espelho o tempo inteiro
(B) essa imagem é só uma ideia que você cria de si mesma, e ninguém precisa se apegar a uma ideia fixa sobre quem é
(C) o ego é uma ilusão, a existência é temporária, então por que não aproveitar o curto tempo que temos para curtir essa viagem que é se entender como indivíduo singular?
(D) conversar sozinha não parece mais tão estranho em uma realidade onde o embirutamento é geral. Basta olhar para fora. Só tem gente doida.
Texto originalmente publicado em agosto de 2021 na newsletter Uma Palavra
2 respostas para “Perdida na personagem”
Obrigada por essa frase:
“conversar sozinha não parece mais tão estranho em uma realidade onde o embirutamento é geral. Basta olhar para fora. Só tem gente doida.” Ri muito!
Lembrei da música Flowers, da Miley Cirus.
Eu converso em silêncio comigo mesma, um Q de loucura circulando rápido na mente. Mas é quando ouço as palavras saindo que entendo minhas estranhezas. Talvez por isso eu ainda prefira a boa e velha conversa com um outro, que seja louco, que seja! Mas no que ele me ouve, eu me percebo. Eu tomaria um café comigo se eu fosse você!
e agora com o incremento de criar várias personas virtuais, um perfil profissional, um pessoal, um de hobbies, a hiper fragmentação feita por si mesmo, para alimentar o descaralhamento total de si. ♥