Resistência subiu a rampa

Lágrimas de alívio são salgadas, mas o gosto é diferente. Não são da mesma substância das lágrimas do desespero e do medo e da raiva com as quais nos acostumamos nos anos em que a barbárie tomou conta do Brasil. Choro de esperança, choro porque vivi para ver essa cena: um presidente eleito pelo povo, subindo a rampa do Palácio do Planalto de mãos dadas com o próprio povo, ao seu lado e atrás dele, um mar vermelho, subindo a rampa juntos.

foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Foi mais que uma passagem de faixa, foi um resgate. Resgate dos símbolos e das palavras como ferramentas de criação, em vez de destruição. Resgate porque nos encontrávamos sequestrados.

Antes de todos os ritos, Lula conta a história de uma caneta que ganhou de um piauiense há décadas. Presente para assinar a posse de seu primeiro mandato como deputado, ele conta. Mas nunca chegou a usar. A caneta se perde. Acaba usando outras, emprestadas, nas suas duas posses anteriores como presidente. A caneta atravessa as décadas, e então reaparece para protagonizar esse momento: a de escrever a história em que nós, o povo, assumimos de novo a posse. 

É nosso momento, percebo. Somos nós subindo a rampa. Somos nós entregando a faixa presidencial para Lula, nas mãos de uma mulher preta. Uma Aline, veja só! Naqueles brasileiros cabemos todos nós: um garoto negro, um líder indígena, um ativista PCD, um artesão, uma catadora, um metalúrgico, uma cozinheira, um professor. Até uma vira-lata! Em que outro lugar do mundo seria possível uma cena tão simbólica como essa? O Brasil é mesmo um lugar mágico.

Pude me ver representada até na cadelinha Resistência, toda pimpona seguindo à frente daquele grupo tão diverso. Vira-lata, esse ser híbrido que simboliza a síndrome brasileira de se ver inferior, de ter vergonha de suas origens. Ali, não. Ali subindo a rampa, cabeça erguida, ocupando lugar de prestígio. Ali, o símbolo da uma resistência que é, talvez, aquilo que temos de mais valioso. Resistência que nos permite sobreviver, atravessar o tempo apesar de toda dificuldade, todo abandono, aguentar tanta porrada e continuar de pé. Resistência que nos fez passar por uma guerra e seguir para continuar contando nossas histórias.

Essa cena foi também o resgate de um sentimento que andava esquecido: orgulho de onde vim. Amor por ser brasileira e fazer parte dessa bagunça bonita cantada em português.

Bastou uma caneta e uma vira-lata, personagens tão pequenos, aparentemente desimportantes, terem lugar em um momento de proporções colossais como esse, para a lágrima mudar de sabor.

Caramba, ainda é possível recolher os cacos dessas ruínas e transformar em beleza. Ainda é possível criar novos significados para todos esses símbolos. Ainda é possível escrever uma nova história para esse povo, onde a miséria e a truculência, essas sim, não terão lugar.

Como Poe, poeta louco americano

Eu pergunto ao passarinho

“Blackbird, assum preto, o que se faz?”

Assum preto, pássaro preto, blackbird me responde:

“Tudo já ficou atrás”

Blackbird, assum preto, pássaro preto me responde:

“O passado nunca mais”

— Belchior, Velha Roupa Colorida

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