Intimidade é uma bosta

Eu sei, eu deveria ter te escrito antes.

Mas aqui não trabalhamos com pedir desculpas, e afinal combinamos que eu ia te escrever sempre que tivesse vontade, certo?

Minha vontade estava passeando por outros cantos; eu estava com a cara metida nesse romance que inventei de escrever e as coisas começaram a fluir de um jeito que parece que eu tinha passado vaselina.

Diz uma velha lenda indígena que todo escritor tem dois lobos lutando internamente, um lobo que adora reescrever, o outro que adora terminar coisas. Todo romance é uma batalha entre esses dois lobos. E qual vence?, pergunta o jovem aprendiz. Aquele que você alimentar com mais café, responde o mestre.

Mentira, a lenda não era assim. Mas você entendeu.

A coisa mais interessante na minha vida no momento está acontecendo do lado de dentro (tão internamente quanto meus movimentos intestinais), e dentro de um arquivo de texto nomeado “cidades afundam”, ainda incompleto demais para mostrar; mas pra mim a melhor parte é essa, de organizar a porra toda e conectar os pontos e ir resolvendo peça por peça e aos poucos ver a coisa ganhar sentido e substância.

Mas quem é que precisa de mais um escritor falando no que está trabalhando? Credo. É só mais uma história, eu penso, e quando me encontro com as pessoas e converso com meus amigos deixo esse assunto de lado.

Em vez disso, comento as notícias, os absurdos da vida real, troco receitas, pergunto sobre o trabalho (dos outros), converso sobre aquele seriado maneiro, repito o senso comum das fake news, da loucura que será a eleição este ano, do clima.

Mesmo quando mergulhamos em papos mais profundos, não há espaço para falar do que estou aprendendo com meus personagens ou das conclusões que cheguei no meio desse processo. Já é demais. Tipo falar da minha menstruação: até posso comentar, mas nunca sei até que ponto pode deixar a outra pessoa desconfortável.

Um pouco egoísmo meu, eu sei. Porque o processo é a parte mais emocionante do trabalho, mas o que eu mostro para as pessoas é o resultado final; o resto guardo pra mim. Mas talvez eu devesse falar? Até porque: quem lê ainda, meu deus? Melhor eu contar logo o livro inteiro, capítulo por capítulo, cada vez que eu fizer um encontro aqui em casa.

Sim, talvez eu devesse falar mais. Já superamos aquela fase de eu ter medo de parecer chata. Você me conhece, sabe que eu sou chata mesmo.

Quando a gente fica íntimo de alguém, começa a esquecer quantas vezes contou a mesma história; manda tomar no cu de forma carinhosa; sabe da rotina da pessoa; começa até a pegar as mesmas manias, mesmo vocabulário, sacar qual é o bordão da pessoa; sobretudo, perde o medo de parecer maluca.

Alguma vantagem tem que ter nesse mundo em que a razão e a lógica foram para o saco: ninguém precisa mais fingir!

Cansativo demais fingir que só tenho assuntos interessantes para abordar, que não penso um monte de merda, que estou o tempo inteiro ocupadaça quando na maior parte do tempo só quero ficar quieta no meu canto; cansada de fingir que gosto de ser modelo de qualquer coisa, fingir que sou uma vencedora quando não sou ou que estou vulnerável quando não estou, fingir que quero pertencer, fingir que concordo, fingir que faço algum sentido.

Eu não vou nem fingir que quero chegar a algum lugar com esse texto.

Você recebe emails de amigos?

Alguém (provavelmente o Tarrask, toda cara de ter sido o Tarrask) me indicou esse texto falando sobre por que newsletters vão sobreviver ao apocalipse, e um dos motivos é a pessoalidade que o email permite; mostrei pro Marcos e ele discordou daquele jeitinho: “Aline, só você usa email desse jeito. A maioria das pessoas aqui usa para assuntos de trabalho”. Será? Pelo menos a maioria não é todo mundo, então talvez você entenda do que estou falando.

Então email pessoal é um pouco isso: uma conversa sem necessidade de expor um ponto ou chegar a um objetivo. Uma divagação sem fim, como o que estou fazendo aqui. Uma falta de preocupação maravilhosa, aquela de clicar em ENVIAR sem nem ler uma segunda vez.

Intimidade é isso, né?

A gente podia voltar a escrever mais uns para os outros. Mas escrever mesmo, não ficar naquela desgraça do zap. Escrever cartas, por que não?

Fiquei triste quando uma carta que escrevi voltou; endereço inexistente, o carteiro anotou no envelope. A carta tocou o vazio e voltou. Se você se chama Evelyne, me passa seu endereço correto, plis? Juro que te respondi, mas a resposta continua na minha mão.

Parece que o desencontro é o único espaço onde a comunicação humana realmente acontece.

E ficamos aqui fingindo que nos entendemos, quando nem isso.

Ontem de manhã estava assistindo um curta do Donald Glover, que ele escreveu antes de Atlanta. É bem o jeitinho dele, do que vemos na série e em seus clipes como Childish Gambino.

Clapping for the wrong reasons traz pessoas conversando e se relacionando numa dinâmica mais próxima da vida real, mas com aquele toque de surrealismo na medida certa. Não demais, para não virar fantasia, nem de menos, para não ficar no campo do realismo puro.

É o que mais gosto no trabalho dele: como tudo se parece um sonho. E, como num sonho, não entendi quase nada, mas gostei de não entender. Porque não entender me faz pensar sobre.

A história inteira ele fica boladão com uma mulher que aparece na casa onde ele está passando uns dias com os amigos, mas ele percebe que ela não é a mina de ninguém ali. No final, ele chega a perguntar: quem é você?, mas ela não responde. Fica o estranhamento de estar dividindo a casa com uma pessoa que ele não conhece; mas quando é que realmente podemos dizer que conhecemos mesmo alguém?

As pessoas têm feito menos sentido que um curta experimental do Donald Glover. Vai ver o problema é que tenho andado sóbria demais.

Ou vai ver o que o curta quis mostrar é que para uma história parecer com a realidade não pode fazer tanto sentido, porque a vida é mesmo louca; a gente finge que entende, mas não entende nada, e fica aplaudindo a coisa toda pelos motivos errados.

Feito as pessoas: não importa o nível de intimidade, nunca dá pra entender completamente; daí eu corro para os braços da ficção, invento personagens, coloco em situações parecidas e fico relendo para ver se algo faz sentido.

Qualquer coisa dividida em parágrafos e separadas por vírgulas ficam um pouco mais compreensíveis. Mesmo quando é um email sem pretensão de ter pé ou cabeça.


Texto originalmente publicado em agosto de 2018 na edição #25 minha newsletter. Para receber as próximas edições no seu email, assine grátis: