Tempo é matéria que estamos sempre tentando controlar. Talvez como forma de nos sentirmos menos vulneráveis a ele. Fazer ficção é uma forma de fazer o tempo girar de outras formas: mais depressa, mais lentamente, dar marcha-ré, saltar bem para frente, parar. Sabemos que são truques, mas encontrar quem faça isso de uma forma que nos surpreende é mágico.
Casa de areia foi um desses encontros com o tempo que me marcou. O filme é de 2005, dirigido por Andrucha Waddington e é protagonizado por Fernanda Montenegro e Fernanda Torres nos papéis de mãe, filha e neta vivendo isoladas no meio das dunas dos Lençóis Maranhenses no início do século 20. E ainda tem Seu Jorge!
O filme mostra como o tempo aproxima e afasta as pessoas de várias formas. Primeiro, com as imagens lindíssimas de uma paisagem cheia de distâncias, que engole as personagens; parece que estão dentro de uma ampulheta. Ou de um deserto. Vai ver foi daí que Denis Villeneuve tirou a inspiração para filmar Duna, 16 anos depois. Casa de areia (assim como Duna) usa os silêncios e as lacunas para esticar o tempo, dar respiro para as atuações. Depois acelera o tempo e faz 10 ou 30 anos se passarem de uma vez.
Também tem o efeito especial genético que é ver a mesma personagem ser interpretada pelas duas Fernandonas ao decorrer das décadas. A série alemã Dark bem que quis ter um efeito especial desses, mas teve que se virar com pessoas iguais em idades diferentes mesmo. É um acontecimento ver as duas contracenando, fazendo mãe e filhas, avançando pelo tempo. As duas têm esse poder de enganar nossa percepção e fazer o truque de apresentar o envelhecer.
O roteiro, assinado por Elena Soarez, também dá aula de como escrever o tempo através das personagens. Deixar que elas mostrem, em falas aparentemente cotidianas. Duas cenas me marcaram muito e mostram, com uma economia de palavras, a distância de tempo que separam mãe e filha, Áurea e Maria. Embora compartilhem do mesmo teto, parecem ser de mundos diferentes.
Áurea chega grávida no mundo de areia, como Fernanda Torres. É 1910. Ali ela tem sua filha e dá a ela o mesmo nome da mãe, Maria. A menina cresce ali, não conhece outro mundo. Passam-se dez anos e todo esse tempo Áurea buscando uma forma de ir embora daquele lugar, mas sempre o desencontro. Frustrada depois de muitas tentativas de ir embora daquele areal sem fim, Áurea volta para o barraco e começa a arrumar suas fotos antigas. Então diz:
— Sabe do que eu mais tenho saudade? De música.
— Canta — a menina pede.
— Não. Música de verdade.
— Como é música de verdade?
— Difícil explicar.
Em cinco linhas, um abismo se abre. E o tempo passa. 20 anos. Maria vira Fernanda Torres, Áurea muda para o corpo da Fernanda Montenegro. O acaso acontece e Maria consegue uma forma de ser levada dali, para a cidade. Áurea já não é mais a mesma: ela agora tem um companheiro ali, não quer mais sair. Maria vai. Quando ela volta, lá pelos anos 70, leva um aparelho de fita cassete. Coloca uma fita para a mãe, enfim, ouvir música. E então conta o que mudou todo esse tempo:
— O homem pisou na lua, mãe.
— O homem pisou na lua? Como, filha?
— Num foguete. Numa espaçonave.
— E voltou mais moço, não voltou?
— Não. Acho que voltou até mais velho.
— Ah. E ele encontrou o quê na lua?
— Nada.
— Nada?
— Nada. Dizem que… areia.
— Areia?
— É, areia.
O abismo de tempo se expandiu. Apesar dele, mãe e filha acharam espaço para o encontro, que é sempre meio assim, desencontrado. Eu queria guardar esses diálogos em um potinho, como aqueles com areia colorida formando paisagens que se vendem como souvenirs.
Não é fácil capturar o tempo, mas algumas palavras dão conta. Não precisam ser muitas, desde que bem escolhidas. O suficiente para mostrar que cada personagem habita um tempo, tão inescapável quanto as dunas de areia das quais Áurea passou uma vida tentando fugir.
Elvira Vigna também me mostrou como escrever o tempo. Ela escreveu livros de viagem no tempo sem que fossem de ficção científica. Em um deles, a personagem explica como desacelerar o tempo, esticá-lo de uma forma que só na literatura é possível. Dá para tentar aí da sua casa.
“Memória e ficção são as únicas formas que conheço de viajar no tempo.”
Guardei essas palavras em um episódio do meu podcast. Para ouvir outras formas de escrever o tempo, só dar o play:
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