Cada livro traz consigo uma rotina embutida. Envolve me fazer sentar em silêncio por muitas horas, durante alguns dias. Pensar em onde vou sentar, buscar pausas onde eu possa encaixá-lo. Ler uma quantidade de páginas o suficiente, então deixá-lo do meu lado no computador ou na sala, bem à vista, para que eu lembre de voltar a ele quando for tomar um sol. O livro é um objeto que exige retornos.
Ler, fazer outra coisa, ler, trabalhar, ler de novo, dormir, e assim por diante. Ler vai pontuando os dias como vírgulas. Há dias em que sinto falta de vírgulas, as frases vão se acumulando em parágrafos gigantes sem pontuação nenhuma onde o sentido começa se perder numa vista cansada que não distingue mais o passar dos dias porque tudo sempre tão igual inclusive o desespero e a urgência de se manter informado bem-sucedido e na moda. Rotinas podem asfixiar, mas as vírgulas estão aí para criarmos respiro. Então leio. Ainda que devagar.
Leio e observo as plantas no jardim. Quem inventou que jardim transmite paz? É uma amostra em pequena escala da brutalidade da natureza. Uma guerra silenciosa por espaço: a cada chuva as plantas crescendo loucamente, dominando tudo, florindo cheias de tesão num convite a insetos que vão aparecendo cada vez maiores, ou a gangues de pássaros que aparecem para causar um fuzuê, nem sete da manhã e as maritacas enlouquecidas como que voltando da balada. Não dou confiança para passarinho, esse bicho evoluiu de dinossauros que o cometa não matou. Se deixar, invadem a cozinha, roubam a comida do gato e cagam no chão.
Os insetos são ainda piores: os pernilongos me atacam na surdina, as moscas invadem a casa com suas turbinas de avião, as larvas começam a aparecer bem gordas no lixo se faz muito calor. Das predadoras, eu gosto. Deixo circular livre as lagartixas, não mato as aranhas. Desfaço as teias na faxina, numa espécie de despejo: boa sorte e que construa sua teia num lugar em que pegue mais mosquitos.
A luta pela sobrevivência pode ser observada de uma distância segura de um quintal. Ao mesmo tempo, quase a ameaça: descuida para ver se não invado a casa, quebro esse piso com tanta raiz que vai brotar, transformo essa sala em um brejo cheio de mosquito, vacila para você ver! O quintal também exige retornos. É preciso estar atento, olhar com atenção para o jardim, estabelecer limites. Até um amigo apontar o quanto as árvores daqui são violentas e rompem as calçadas com suas raízes, eu não tinha percebido o quanto o reino vegetal é hostil. Estamos todos na disputa pelo mesmo espaço.
O pé-de-maracujá, depois de muito pelejar, cresceu de uma vez. Ficou cheio de folhas e estendeu um único ramo em direção à grade da escada. Todos os dias vou ver o quanto progrediu: primeiro agarra um lacinho na grade e então cresce um par de folhas; depois se laça mais uma vez em volta da grade e cresce mais um pouco, e assim por diante, como um alpinista firmando bem os pés antes de subir. Já são quatro lacinhos presos, o ramo alcançando o corrimão. Em um dia pode parecer que avançou um tantinho insignificante, mas no espaço de muitos dias, esse tantinho contínuo se torna um avanço notável. Parece parada, mas está trabalhando.
Nos cadernos, escrevo um pouquinho de cada vez, com uma persistência digna dos maracujás. Um par de folhas todo dia e vou criando um laço de retorno com esse momento de derramar as palavras no papel, em um fluxo contínuo. Não conheço outra forma de cultivar textos: quanto mais se escreve, mais se tem vontade de escrever. O hábito vence, todas as vezes.