Cidade perdida reaparece depois de 16 anos no fundo de um lago

1.

Ocorre às vezes de cidades inteiras desaparecerem sem aviso e quase ninguém se importar com o que se perdeu ali. Escrevi Cidades afundam em dias normais movida pela urgência de registrar essas coisas impossíveis de recuperar. Quis contar a história de pessoas que ninguém mais se interessava em contar. Me atrevi a contar a história de pessoas iguais a mim.

Sim, cidades repentinamente afundando e depois reemergindo em ruínas chamam a atenção, rendem manchetes de impacto. Mas e o que as pessoas viveram ali, naquele lugar extinto? Com o que sonhavam quando adormeciam? O que construíram? O que sentiam uns pelos outros? Como iam para a escola? Quais eram seus talentos? Que problemas enfrentavam? Em quais objetos depositavam afeto? Onde enterravam seus mortos?

Meu interesse foi olhar para essas pessoas, colocá-las sob uma lente de aumento, conviver com elas, aprender seus nomes, acompanhar suas escolhas (ou falta de) em meio a um pequeno apocalipse que, ao contrário dos apoteóticos fins do mundo da ficção, acontece lentamente, num ritmo imperceptível, o ritmo das cidades pequenas onde tanto o tempo quanto o calor têm um peso que faz tudo se arrastar devagar.

Eram tempos de morrer cedo. Uma época em que o esquecimento era bem democrático.

O mais incômodo sobre o Paleolítico era a falta de nomes, a impossibilidade de atribuir os feitos a qualquer indivíduo que fosse; os grandes inventores e artistas e líderes perdidos na mesma pilha de ossos de medíocres e incompetentes e idiotas pré-históricos enterrados em algum sambaqui. Já existiam idiotas naquela época? Kênia tinha certeza que sim.

Trecho de Cidades afundam em dias normais (Rocco, 2020)
Cueva de las Manos, caverna na Argentina

2.

Alto do Oeste, a cidade do livro, é uma cidade que poderia ser muitas, apesar do elemento aparentemente fantástico de desaparecer debaixo d’água e anos depois reaparecer em ruínas. Na vida real, cidades afundam com uma frequência desconcertante. 

imagem do bairro do Pinheiro, Maceió, afundado por atividade de mineração da Braskem

Ao decorrer da escrita, fui tropeçando em várias histórias de cidades afundadas, por ação humana ou da natureza, no Brasil ou em outros países, lugares que ficaram submersos ou foram varridos pela lama. 

Seca faz ressurgir cidade submersa no Iraque. Uma cidade no litoral do Rio de Janeiro que está em processo de ser engolida pelo mar. O afundamento de um bairro inteiro em Maceió que expulsou dezenas de milhares de pessoas de casa. Uma cidade em Goiás submersa para a construção de uma barragem, na época da ditadura. A cidade baiana onde Wagner Moura foi criado. Uma cidadezinha na Argentina que passou décadas escondida sob as águas salgadas de um lago que um dia foi sua principal atração turística. Um vilarejo que foi submerso no Lago Paranoá, para que a utópica Brasília pudesse ser inaugurada sem a vista das casas simples dos trabalhadores que a construíram. 

Abertura das comportas do Lago Paranoá em Brasília. Imagem: Arquivo Público — DF

Ruínas submersas da Vila Amaury. Imagens: Beto Barata, daqui.

Eu poderia continuar esse catálogo indefinidamente. Em vez disso, resolvi meter essas cidades todas em um livro, onde eu poderia falar não da água, mas das grandes rupturas, aquelas que normalmente não podem ser vistas: pessoas que vão embora, culturas que somem, relacionamentos que acabam, pais que abandonam. Tragédias que não ganham reportagens porque estão costuradas no tecido dos dias normais.

O livro é um passeio guiado pelas ruínas de uma cidade que deixou de existir, onde a principal atração não é o que restou das paredes e objetos e placas e prédios públicos e casas, mas algo que paira acima do que pode ser visto. A principal atração de Alto do Oeste é um monumento invisível: a memória dos que viveram ali.

“Nunca teve ninguém que se interessasse pela cidade”: imagens de São Simão, Goiás, afundada para construção de barragem. Imagens do documentário “São Simão, adeus”, de Mario Kuperman

Padre Matias não tinha cara de quem mentia, mas talvez o olhar sereno fosse outra coisa que não o temor a Deus; a sanidade que existia ali parecia ter feito as malas e abandonado a paróquia, a batina e a cidade muito antes do próprio padre. Sobretudo se fosse verdade o que contavam: Alto do Oeste submersa e Matias ainda viveu alguns anos sozinho na pequena ilhota de mato que ficou de fora d’água.

(…)

Caminharam os três no bosque do alto do morro, onde Matias construiu uma pequena capela, com barro cozido. Tinha um aspecto primitivo, e o interior coberto de cera derretida sinalizava uma infinidade de velas acesas no decorrer dos anos, o que ajudava a criar uma aura de sagrado.

Nos anos em que Matias viveu ali, a capela dava vista para um lago de bordas distantes, a superfície lisa como papel, exceto quando passavam as capivaras, em nado sincronizado; mas as lentes de Kênia mostravam uma vista panorâmica das ruínas da cidade, das ruas vazias; em outra época, muito antes de a capela existir, dali dava para ver as motos e os ônibus passando na avenida principal, os telhados das casas, os adolescentes subindo e descendo ladeiras, as senhoras carregando sacolas, os carros de som anunciando ovos ou leite ou sorvete, ecoando “tragam suas bacias!”. A vista privilegiada dali fazia do morro o palco, todos os anos, da encenação da via-crúcis; quem tinha a melhor visão era sempre o sujeito que fazia papel de Cristo, mas só depois de crucificado. “Pai, por que me abandonaste?” foi uma frase muito ouvida pelo morro.

(…)

“Todas as orações que fiz em cima desse morro, minha filha, nenhuma delas foi em vão. Depois eu soube. Um milagre estava operando aqui. Se Alto do Oeste afundou, foi para que a gente pudesse contar histórias de esperança”.

Trecho de Cidades afundam em dias normais (Rocco, 2020)
Imagens das ruínas da Villa Epecuén, Argentina

3.

O que é a identidade brasiliense? Esse tema surgiu algumas vezes nas conversas que participei sobre o livro (apesar de ter sido lançado em meio à pandemia, sem o calor das sessões de autógrafo e bate-papos presenciais). A resposta honesta é que eu nem sabia que existia uma até eu vir para São Paulo. Vivendo aqui descobri que brasiliense tem sotaque, o que era invisível para mim vivendo em Brasília, especialmente por ser um lugar muito novo que é a mistura de tantas culturas. 

Mas sim, aparentemente brasiliense tem sotaque, tem um jeito próprio de ver o mundo que eu não percebia como único, ou diferente das demais. O peixe não vê a água. Por isso digo que só foi possível para mim escrever um livro ambientado no Centro-Oeste depois que saí de lá. Pegar distância para enxergar melhor.

Claro que com esse livro não pretendi encapsular uma identidade brasiliense ou algo do tipo. Nem poderia. Como em qualquer lugar, as vivências são múltiplas. Cresci na Cidade Ocidental, uma cidade no entorno do DF, tecnicamente Goiás, e sei que é uma experiência radicalmente diferente de quem cresceu no Plano Piloto. O interessante foi observar, a partir dos comentários dos leitores sobre o livro, quais eram as experiências que se entrelaçavam, e perceber o que havia de comum entre a vivência que tive de Centro-Oeste e a de outras pessoas espalhadas pelo Brasil.

Não foi fácil nem confortável assumir esse ponto de vista sobre passar os anos de formação numa cidade pequena no Centro-Oeste, ainda mais quando histórias sobre essa região são tão poucas — ou tem tão pouca visibilidade. Como se a gente não existisse, ou não merecesse um lugar nosso no mapa da literatura nacional.

Ao mesmo tempo, é um imaginário que ainda está em construção. Sim, tem todo um imenso lote para carpir, mas há muita liberdade criativa em escrever sobre o que não está definido ainda.

Sobre

De onde observo, o brasiliense (pelo menos enquanto arquétipo cultural) é alguém com espírito de expansão: a viagem está na história de origem da maioria de nós, por ser uma cidade feita de pessoas que vieram de vários cantos do país. Vai ver viver numa cidade em formato de avião (ou nos arredores dela) deixou um traço psíquico: o de não temer partir, cair no mundão, desbravar o que é novo. Essa é a definição que gosto (não necessariamente a única ou a verdadeira) porque foi a que ficou estampada no livro, na forma dos personagens Kênia e Tiago: uma fotógrafa e um grafiteiro tentando encontrar seu lugar no mundo como artistas, indo muito além das fronteiras criadas para contê-los.

Dentro daquela moldura, Kênia via os dias se passarem e as pessoas seguirem suas rotinas, como se fingissem que nada tinha mudado, como se ignorassem que a distância entre elas aumentava. Continentes também pareciam estar no mesmo lugar, quando, na verdade, afastavam-se devagar.

Trecho de Cidades afundam em dias normais (Rocco, 2020)

4.

Ter crescido numa cidade violenta me mostrou a necessidade de aprender logo a criar defesas. As estratégias de sobrevivência são diversas, mas a mais importante para mim foi a arte. A linguagem, a literatura, o desenho, tudo o que passa pela criação artística, opera em oposição aos efeitos da violência.

Cidades afundam em dias normais está cheio de episódios de violência, dos mais diversos tipos. Quem procura por um livro seguro, conciliador, errou de porta.

É difícil para mim pensar em um elemento mais absurdo, mais sem explicação e mais indizível do que a violência. É uma força que está fora do campo das palavras, numa areia movediça simbólica, que suga tudo ao redor e deixa apenas cascas vazias por onde passa. Ninguém é imune a ela na história, nem mesmo a indestrutível professora Érica. 

Se há algo capaz de penetrar esse campo de devastação que a violência cria na cabeça das pessoas são as palavras. Não por acaso a biblioteca e a escola (que mais tarde vira um museu) aparecem no romance como refúgios, fortalezas. Os livros, a música, o hip hop, o ato de escrever em um caderno, tudo acaba servindo como uma tábua de salvação para os personagens.

Não me agrada a estética da violência pela violência, que na ficção muitas vezes é usado apenas para criar o drama, prender a atenção da audiência ou funcionar como catarse para a raiva e revolta dos espectadores; resolvo trazer a violência para o coração da história mais como uma investigação do que é possível surgir em resposta a ela.

Essa resposta veio em forma de fotografias. Ou de grafites pintados em muros. Ou ainda na forma de uma professora de História e de uma estudante tentando agarrar memórias com a força dos braços. 

A satisfação de erguer uma parede era de um tipo tão especial que Vicente achava que merecia uma palavra diferente para descrevê-la. Não a mesma satisfação de matar a fome depois de um dia puxado na obra, nem a mesma satisfação de deitar com uma mulher, mas uma satisfação outra, a de dar significado à sua vida, a de se sentir capaz. Talvez já existisse uma palavra para isso e Vicente só precisasse descobri-la, como andava a descobrir tantas outras, que passaram a se revelar com nitidez ao seu redor, em placas, jornais e até nos sacos de cimento.

“Vicente Xavante. Pedreiro.”

Com o mesmo cuidado de erguer paredes, Vicente escrevia seu nome no caderno, e preenchia uma folha inteira com aquela letra redonda e firme, cada vez mais íntimo do alfabeto. Nos primeiros exercícios, a professora segurou sua mão para mostrar como conduzir o lápis e explicou que se começava a escrever do topo da folha para baixo, e não de baixo para cima, como foi seu primeiro instinto diante do papel.

Trecho de Cidades afundam em dias normais (Rocco, 2020)

5.

Trilha sonora: trabalhamos! Feito gravar músicas numa fita cassete como fazíamos em meados dos anos 90, juntei em uma playlist as músicas que me inspiraram na escrita do romance, músicas citadas na história e músicas-tema de alguns personagens. Você pode ouvir aqui:


6.

Espero que esse texto sirva de convite para que você visite as ruínas de Alto do Oeste. Se você já leu o romance, espero que eu tenha oferecido aqui informações ou perspectivas novas sobre a história.

A sua opinião sobre o livro é extremamente bem-vinda! Você pode deixar suas impressões no Goodreads, no Skoob ou mesmo na Amazon. Você pode falar sobre Cidades afundam nas redes sociais ou até me mandar um email em escreva@alinevalek.com.br. Vou adorar te ler. Muito obrigada pela leitura e por chegar até o fundo deste texto :)