arte: Francisco Negrello
Um sujeito com duas cabeças voltadas para direções opostas: é a representação mais comum de Jano Bifronte, entidade a quem os antigos romanos atribuíam os começos, os portais, as transições.
Certa vez, Jano recebeu em sua humilde residência o deus Saturno, expulso de casa por seu próprio filho, Júpiter. Não que Saturno fosse um paizão exemplar, já que era conhecido por devorar seus filhos vivos. Jano, que era muito gente fina, ofereceu sua hospitalidade ao deus do tempo. Em agradecimento, Saturno deu a Jano o poder de ver, simultaneamente, passado e futuro.
(Sem querer querendo, também o poder de usar dois estilos de penteado e de barba ao mesmo tempo)
Uma cabeça olha para o que passou; a outra, para o que está por vir. Jano é velho e é moço. É guerra e é trégua. É o terreno que existe entre a barbárie e a civilização. É o batente da porta, é dentro e é fora. É o cara das transições e transações. É as duas faces da moeda.
É, talvez, o único deus que os romanos não apropriaram dos gregos, feito Dionísio, que virou Baco, Cronos, que virou Saturno, ou Batman, que virou Homem de Ferro – ops, mitologia errada.
Mas de símbolos tão arcaicos não se pode falar com tanta certeza. Pode ser que Jano seja romano da gema, mas também é possível que seus criadores tenham bebido de outras fontes: Isimud, da mitologia suméria, também era representado como uma figura com duas cabeças. Um deus mensageiro, que, como Jano, também ficava entre o aqui e o acolá.
A Jano os romanos teriam consagrado o primeiro mês de seu calendário. Daí janeiro.
O tempo passa, os impérios caem, os deuses morrem, as religiões mudam. As palavras permanecem e os símbolos ficam, ainda que se transformem, ganhem roupas novas, apareçam em contextos diferentes. Talvez entrar em janeiro ainda carregue um quê de passar pelo portal de Jano, onde adquirimos um pouco desse poder de olhar, ao mesmo tempo, para trás e para frente.
O problema de ter duas cabeças é que elas podem ter mais espaço para projetos de futuro ou para as noias do passado; para aprendizados com o que vivemos ou para a ansiedade com o que está por vir. Como saber a medida?
Enquanto não a encontramos, passamos mais uma vez pelo portal. Jano, ou janeiro, com a cabeça voltada para a frente, está parado nessa passagem apenas para nos lembrar: a mudança é a única certeza do caminho por vir.
Texto originalmente publicado em janeiro de 2020, na minha newsletter Uma Palavra. Assine grátis e receba as próximas edições no seu email.