Pouco se avançou no estudo da anatomia e da sexualidade das sereias, desde que uma sereia brotou na banheira do Tom Hanks — fato este dramatizado na adaptação cinematográfica que contou com Daryl Hannah como a sereia e Tom Hanks interpretando ele mesmo.
Uma sereia em minha vida aprontando altas confusões
De qual mecanismo do prazer é equipada uma criatura da cintura para cima mamífera e da cintura para baixo da mesma família das piranhas? Enquanto não descubro um cientista que esteja debruçado sobre esta questão, resolvo articular uma resposta a partir do mais vasto repertório existente sobre as sereias: a rede mundial de computadores.
Perguntei ao Google e o primeiro resultado foi um tuíte da Clara Averbuck com a mesma pergunta. Aparentemente as mais interessadas em desvendar essa questão são escritoras. Os resultados seguintes apontados pelo Google conduzem a uma infinidade de sites pornô, em vídeos com nenhuma sereia envolvida. Talvez uma metáfora para mulher rabuda.
Num fórum de RPG encontrei o tópico “sexualidade e amor” das sereias, mas trata tão somente do processo de reprodução, envolvendo tritões gozando na água para fertilizar os óvulos lançados pelas sereias. Ok, mas e o gozo, pessoal? Reprodução não é o mesmo que prazer. Continuei sem respostas.
Descubro que Kafka, em 1917, escreveu um ensaio sobre o assunto: O silêncio das sereias. Promissor. Ele comenta um episódio da Odisseia, em que Ulisses é advertido sobre o perigo do canto das sereias:
Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente – e desde sempre – todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. (…)
As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante – que tudo arrasta consigo – não há na terra o que resista.
E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses – que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes – as fez esquecer de todo e qualquer canto.
Ulisses no entanto – se é que se pode exprimir assim – não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. (…)
E, de fato, quando Ulisses chega, as poderosas sereias param de cantar, seja porque julgavam que só com o silêncio poderiam conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses — que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes — as fez esquecer de todo e qualquer canto.
Mas elas – mais belas do que nunca – esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses.
— Franz Kafka, “O silêncio das sereias”, 1917
Molhadas e escorregadias, as sereias permanecem um mistério para a ciência
Em um outro artigo, encontro pistas mais sólidas sobre a natureza do gozo das sereias, através das palavras de Lacan: “as orelhas estão no campo do inconsciente e são os únicos orifícios que não podem ser fechados”. Os ouvidos me parecem a chave da questão! Diferente do que os vídeos pornô sugerem em seus títulos, uma sereia não pode ser penetrada — ninguém sabe dizer onde ficam e como são suas genitais, e de forma alguma o gozo é monopólio do aparelho reprodutivo. Por outro lado, é a sereia que penetra os outros, pelos ouvidos. Talvez por isso os homens tenham tanto medo de ouvi-las.
Se a sereia seduz com o canto, a voz — o som — talvez seja a forma com o qual a sereia experimenta o gozo. Basta voltar à documentação mais importante já registrada sobre o assunto: A Pequena Sereia.
Para deixar de ser sereia e ir em busca de seu boy magia, Ariel paga o preço com a própria voz. Até seria o equivalente a uma castração, se não levarmos em conta o que escreveram Kafka e Lacan: mesmo uma sereia sem voz ainda é capaz de gozar. São os ouvidos os orifícios que as sereias preenchem de gozo.
bingooo
Quando cantam, apenas transmitem o êxtase que experimentam quando mergulham, e ficam imersas nos sons do oceano. Na água salgada os sons se propagam em velocidade, a grandes distâncias, trazendo todo o tipo de segredo: de navios vindos de muito longe, a tentáculos se movendo devagar.
Corpos colossais deslizando na água, fofocas de lagostas, mordidas de tubarões, plânctons fazendo cosquinhas na água, o balé das águas-vivas, a delícia das vozes que só podem ter saído da garganta molhada de uma criatura viva: tudo vira estímulo que envolve a sereia em gozo. Com o corpo inteiro elas escutam os segredos cochichados pelo oceano e, quando vão à superfície, tentam traduzir com a própria voz essa orgia de sensações. Pornografia sonora!
Imagino a frustração das sereias em tentar conduzir os humanos para esse lugar de gozo absoluto, e vê-los se afogando no processo. Um pornô que tratasse de forma mais realista a tentativa de transar com uma sereia teria inevitavelmente um final trágico — e afogamento não é das cenas mais excitantes de se ver.
Por isso, elas até podem se encantar pela ingenuidade e vulnerabilidade de um ou outro marujo, mas amor, mesmo, só fazem com o mar.
Com este texto, encerro minha participação na blogagem coletiva Estação Blogagem, que organizei com a Gabi Barbosa, com o tema Tarô: cada semana de novembro foi regido por um naipe que inspirou a produção dos textos. Para saber mais, leia o primeiro texto aqui.