Com o que os animais sonham, eu não sei. Um provérbio cuja menção devo a um de meus alunos afirma sabê-lo, pois coloca a seguinte pergunta: “Com o que sonha o ganso?”, e responde: “Com o milho”. Toda a teoria de que o sonho é uma realização de desejo está contido nessas duas frases.
– Sigmund Freud, “A interpretação dos sonhos”
Sonho é um teatro encenado dentro da sua cabeça criado para te fazer de trouxa. Já achava isso quando era uma pirralha, fechando as pálpebras como quem entra na sala escura de um teatro, ou de um cinema, esperando algo se iluminar lá no fundo quando tudo silencia por tempo o suficiente para o espetáculo começar. Mera espectadora. É como me vejo. Às vezes com mais poder, como uma diretora. Que pede para os atores refazerem a cena, acertarem o diálogo. Não, não, esse roteiro está indo por um caminho ridículo, vamos começar tudo de novo. Quero que essas pessoinhas holográficas das minhas alucinações tenham diálogos cabeçudos, de fala hipnotizante, com aqueles quotes que ficam na memória, entendeu? Quero diálogos do nível daquela trilogia de filmes Before, se possível quero que Ethan Hawke e Julie Delpy interpretem os personagens do meu sonho, pleníssimos. E daí que essas conversas jamais seriam possíveis na vida real? Sonho não é lugar para procurar verossimilhança. Eu quero ser enganada, foi para isso que paguei o meu ingresso! Eu tenho todo esse equipamento imaginário e não tenho medo de usá-lo para realizar os meus desejos. E então reduzo a escala do cenário do sonho a uma maquete de miniaturas, para mostrar à toda minha equipe onírica exatamente o que quero que aconteça. Então transporto as imagens para uma praia com água turquesa e tranquila, que é justamente onde eu gostaria de estar, sirvo um drink, escolho um jazz e grito AÇÃO para continuar a rodar o sonho. Meu Freud interior me olha com aquela cara “você sabe o que isso significa, né”. Ignoro o chato e volto a desfrutar desse lugar gostosinho que é ser uma cineasta com poder e recursos ilimitados, fazendo a mim mesma de trouxa com um monte de efeitos especiais e diálogos ensaiados para me dizer o que quero ouvir. Por isso durmo cedo. Para aproveitar a sessão. Não que seja sempre agradável. Às vezes parece um filme do Aronofsky, aquela tensão de que tem algo muito errado acontecendo, mas você não entende muito bem o quê, só segue o fluxo e torce para acordar logo.
Esse sentimento de desprazer que retorna no sonho não exclui a existência de um desejo; cada pessoa tem desejos que não gostaria de contar aos outros e desejos que não quer admitir a si mesma. (…) A distorção onírica, portanto, se mostra realmente como um ato de censura. Porém, levaremos em conta tudo o que a análise dos sonhos de desprazer revelou se alterarmos da seguinte maneira nossa fórmula que deve expressar a natureza do sonho: o sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (reprimido, recalcado).
– Sigmund Freud, “A interpretação dos sonhos”
Teatro me leva a esse lugar estranho dos sonhos. Que você precisa prestar atenção no que toda a piração simbólica quer dizer e por que esse personagem apareceu vestido com um saco de batatas e uma pantufa de ursinho. Se está estranho demais, começo a desconfiar que é como uma peça de teatro na época da ditadura. A história tem que passar pelo crivo da censura, mas os atores dão um jeito de transmitir a mensagem subversiva do meu desejo sem que eu apague as luzes e mande fechar o boteco. Meu Freud interior dá uma tragada em seu charuto. A peça acaba e aplaudo, mas pelos motivos errados. Entendi nada. Mesmo assim volto na noite seguinte, como uma viciada numa série ruim, que a gente insiste até onde dá pé. Tem séries que acho que não existem realmente na TV, que acho que só podem ter sido um daqueles sonhos ruins, chatos e incompreensíveis. Homeland, por exemplo. Existiu ou apenas delirei? Serve para algumas conversas também. Amigo, realmente conversamos sobre isso ou essa história só contei para a sua versão holográfica dentro da minha cabeça? Já me perco, porque no geral passo mais tempo conversando com os personagens que eu crio dessa gente que existe. Me identifiquei demais com a guria daquela série de nome engraçado, Gambito da Rainha. Quem nunca ficou chapadaça de madrugada jogando xadrez imaginário com peças se mexendo no teto, né? Só vi o primeiro episódio, mas só essa cena já é a história da minha vida. Ficar refazendo os passos das conversas, tentar encontrar o movimento onde mandei mal, ensaiar jogadas melhores. Mas que graça tem jogar em um tabuleiro onde só eu posso ver que ganhei? Apago as luzes. De vez em quando é bom cair num sono profundo e acordar sem a lembrança dos filmes que eu mesma dirigi.
Existem sonhos simbólicos e realidades que simbolizam tais sonhos. Ou ainda, existem realidades simbólicas e sonhos que simbolizam tais realidades. O símbolo é, por conseguinte, o prefeito honorífico do universo da minhoca. No universo da minhoca não se estranha que uma vaca leiteira esteja à procura de um alicate. Em algum momento a vaca leiteira há de conseguir o alicate.
– Haruki Murakami, “Caçando carneiros”
Minha primeira publicação digital independente foi uma história sobre sonhos. Hipersonia Crônica é uma noveleta onde realidade e sonho se confundem numa história com contornos junguianos. Um executivo à beira de um burn out tenta resgatar uma mulher com pilhas no lugar do coração, numa busca onde as ameaças são o trabalho em excesso, a tecnologia, desejos reprimidos e uma música do Tchaikovsky.
Também escrevi o conto O que sonham as pílulas, publicada na Revista Trasgo. Uma doideira que eu adoraria assistir sob a direção do David Lynch. Nicolas Cage teria que ser escalado para o papel do ex-marido da protagonista, e tenho CERTEZA que ele toparia.
Este texto faz parte da blogagem coletiva Estação Blogagem, que organizei com a Gabi Barbosa, com o tema Tarô: cada semana de novembro será regido por um naipe que vai inspirar a produção dos textos. Para saber a programação e participar, leia o primeiro texto aqui.