fotografia de Caroline Macedo
O peso da vida da pessoa fica guardada no maxilar. Marcos me apontou isso enquanto olhava uma foto que a irmã havia tirado no interior da Paraíba. Na imagem, uma senhora com fios brancos esvoaçando despenteados, as rugas despontando na pele como o curso de rios, o maxilar uma represa: sem dúvidas o elemento mais sólido e geográfico da fotografia. Um centro de gravidade.
Relaxa o maxilar, a professora de yoga sempre diz, justamente porque tão fácil de esquecer. Parece que quanto mais a cabeça fica densa e começa a se desprender do resto do corpo, mais o queixo tem que se tensionar para segurar a barra de equilibrar essa cabeça. Trava de segurança.
Fiquei bolada com aquilo e comecei a reparar mais no meu maxilar. Ou vai ver passei a reparar depois de a propaganda me dizer que ele não é adequado, que não tem harmonia, feito instrumento desafinado.
Não entendi de onde veio e para onde vai a recente moda da harmonização facial. Só sei que tenho medo do exército de clones que começa a surgir disso: o mesmo queixo, lábios bem inchados, bochechas salientes, olhos simétricos, uma lapa de sobrancelha, cuidadosamente desenhada para parecer selvagem. As sobrancelhudas, em repentina abundância, me fascinam e ao mesmo tempo me angustiam: apontam para algo que eu nem sabia ter pouco.
Reesculpir o rosto até chegar a um resultado matemático, eficiente para alcançar a meta de matchs, de crushs, de likes. Engenharia da atenção. Ou talvez se moldar para conseguir conviver com a câmera, essa máquina implacável que às vezes mostra a verdade mesmo quando achamos que estamos disfarçando bem, que estamos seguros no nosso melhor ângulo. Tem segredos que só uma câmera consegue acessar.
Reza a lenda lá em casa que meu avô dizia “não tem isso de sair feia na foto, você sai na foto do jeito que você é”. Minha avó nunca mais gostou de ser fotografada. Desconfio que pior do que se ver feia é se ver. Não no invertido do espelho, mas por esse olhar de fora.
Na semana em que todo mundo postou foto de criança lado a lado com as fotos de adulto só fiquei pensando em como o tempo maltrata. No geral, demos uma estragadinha, vai. A pequena Valek, na maioria das fotos, tem os olhos bilocudos de curiosidade e um sorriso de quem acha graça na vida. A adulta, eu consigo ver, tem uma bagagem de tristeza calcificada que, prestando atenção, eu sei que está lá, puxando meus sorrisos para baixo. Harmonização ou botox deve resolver.
Esforço demais para se segurar dá nisso. Fica impressa na foto, em dedos entrelaçados, o pescoço tenso, ombros curvados, o rosto travado na incerteza se olhar para a câmera vai revelar ou esconder o desconforto. Nem adianta fugir da foto, o corpo já é exposição.
Lembro de Marina Sena explicar que gostosura é autoconhecimento. Um saber se colocar no mundo por dominar o manejo do que já está incluso no pacote. Um saber que é particularmente difícil acessar quando há tantas camadas de barreiras, obstáculos, escotilhas e portas de aço para atravessar. Precisa nem dizer quem colocou tudo isso ali dentro.
Seja água, já diria Bruce Lee. Eis aí o verdadeiro soco de uma polegada: o entendimento que, para fluir, é preciso parar de fazer tanta força. Desaprender o que levou o curso de uma vida, desaprender o que moldou minhas estruturas internas, desaprender a ser represa.
Texto originalmente publicado em 17 de outuburo de 2020. Para receber os próximos textos de Uma Palavra diretamente no seu e-mail, assine grátis aqui.