Uma Palavra: Cancelamento

Salomé com a cabeça de João Batista. Gravura de Barry Moser.

Temos essa necessidade de exemplos de pessoas se estatelando no chão. É instrutivo ver gente errando feio. É um alívio ver alguém se dando mal. Tem um sabor especial ver alguém que alcançou o topo rolar ribanceira abaixo como um saco de batatas sem moral alguma.

As Vídeo-Cassetadas cumpriam parte dessa função social. Não por acaso a maioria dos memes consiste em rir da desgraça alheia. Somos movidos a schadenfreude. Mas nessa época em que cada pessoa é Publicitária de Si Mesma, todas fazemos o possível para não mostrar nossos tombos. Cada um se esforçando horrores para propagandear suas conquistas, a ponto de acontecimentos cotidianos virarem eventos incríveis (todo evento, aliás, precisa ser INCRÍVEL ou não aconteceu) ou de gestos banais se transformarem em conquistas hercúleas que merecem palmas e uma avalanche de biscoitos.

O cancelamento é a força no sentido contrário nesse pêndulo das vaidades, feito Miley Cyrus nua em cima de uma bola de demolição. “Aliás, ela foi cancelada?”, tentei buscar mentalmente a resposta para saber se era ok usar ela na minha metáfora, mas não faz diferença, se o cancelamento é uma escolha individual. O cancelamento, como ato de expor os erros de alguém publicamente (veja, não é um conceito nada novo, não precisa se assustar), é um gesto pessoal (não gosto dessa pessoa, não quero mais consumir o que ela faz) feito em espaço público, como parte de uma performance coletiva. 

performance de cancelamento

Cancelar, assim, como se as pessoas fossem um serviço. “Se alguma celebridade fez ou disse algo inaceitável e você deseja cancelar esse serviço que ela presta ao te entreter, tecle 2.” O boicote até então foi a melhor forma que encontramos de apontar os erros que não aceitamos, ferindo onde mais dói: no bolso. Como militantes, somos ótimos consumidores!

Não sei de onde tiraram que essa ideia seria boa: alguém já tentou cancelar a NET ou algum plano de telefonia? O inferno que é: no momento em que você decide romper a relação é que se começa a discutir a relação; a NET quer conversar, você não consegue achar o botão de “não quero mais essa desgraça”, de repente aquele cancelamento passa a ocupar horas demais do seu dia, você precisa ir ao Twitter para falar sobre isso. E eles nem voltam para buscar o aparelho! Como se soubessem que logo logo você vai ficar sem opções e voltar para eles de novo. Que é exatamente o mesmo processo no qual canceladores e cancelados se envolvem.

Não é uma relação que se rompe ou uma pessoa que evapora instantaneamente do seu pensamento. Pelo contrário, o cancelamento é só uma nova fase de um relacionamento que perdura, nem que pela sua negação. Para cancelar alguém, você inevitavelmente engaja com esse alguém. Há uma cena no filme argentino Relatos Selvagens que ilustra bem essa relação: quando dois corpos se consomem numa explosão e são encontrados carbonizados, abraçados, já não importa se o abraço é porque se amavam ou porque lutavam um com o outro. O fogo os consumiu do mesmo jeito.

Ao menos se as pessoas canceladas deixassem de existir, de produzir ou de se expressar, mas nem isso! Não consigo lembrar de qualquer pessoa que tenha sido de fato cancelada, por mais horrível que fosse: J.K. Rowling continua obscenamente rica, Pugliesi continua com fãs, o goleiro Bruno ainda joga futebol, a obra de Lovecraft, Monteiro Lobato e Woody Allen continua disponível. Nada acontece feijoada. O cancelamento não tem o poder de aniquilar o que quer que seja. É uma arma de paintball: até mancha, às vezes dói, mas não acaba com ninguém.

Longe de mim cancelar o cancelamento, pois eu mesma sou adepta e não economizo na minha guilhotina imaginária. Sei que cabe a cada um desenvolver os próprios critérios sobre quais erros são inaceitáveis, ou as regras sobre separar artista da obra (até pouco tempo, tinha que jogar ambos no lixo; aparentemente, agora tá liberado separar. Por que será?). Mas eu não preciso de motivos tão nobres para cancelar alguém. Cancelo por bem pouco. Uma olhada torta, eu não ir com a cara: acabou. Morreu para mim. Estudei na Escola Michael Jordan de Cultivo de Ranço Perpétuo.

Temos essa mania de exagerar. De repente o cancelamento vira essa ameaça que deixa todo mundo apavorado, um mal a ser combatido. Os notáveis se tremem de medo, assinam até manifesto anti-cancelamento, o horror, querem interditar o debate! Mas criticar posicionamentos de figuras públicas não deveria ser parte do debate? Muito fácil confundir cancelamento, crítica e censura. As linhas se borram nessa internet de ânimos permanentemente exaltados, excitados com tanto estímulo. Mas calma. Menos, bem menos. 

Como muito bem colocado pelo Emicida, o que está acontecendo agora é simplesmente que as pessoas em posições de destaque estão sendo criticadas e questionadas. As merdas que as pessoas fazem e falam do alto de suas caixas de sabão no meio da praça não passam mais completamente impunes. Tem um custo, como todo e qualquer poder.

Cancelamento parece a palavra do momento, mas não é novidade. Cada época tem sua própria multidão armada de tochas e forquilhas, movidas por motivos justos ou não. Unir-se a ela, ao menos na internet, ainda é decisão que vai de cada um. O que esperamos ver ao final de cada um desses espetáculos ainda me parece a mesma coisa. O que a gente quer mesmo é ver o oco.


Texto originalmente publicado em 29 de julho de 2020. Para receber os próximos textos de Uma Palavra diretamente no seu e-mail, assine grátis aqui: