Ser fã de basquete não é requisito para assistir ao documentário Last Dance, sobre a última temporada de Michael Jordan no Chicago Bulls. Tenho alguma propriedade para falar: o que conheci de Michael Jordan na época em que ele jogava se resumiu à sua atuação combatendo alienígenas hostis em quadra, em parceria com Pernalonga e Bill Murray; apesar disso representar o nível baixíssimo do meu conhecimento sobre basquete, consumi os episódios do documentário com a paixão de quem assiste a uma novela.
Organizados dentro de uma narrativa, mesmo fatos reais ou a frieza dos números de um placar ganham contornos de uma peça dramática: surgem os heróis, os vilões, os mentores, os aliados, os rivais, elegemos favoritos (oi, Pippen!), os mais carismáticos, os malucos. Os arquétipos todos ali. Há narradores, viradas dramáticas, divisão em atos, além de muito rap dos anos 90 e um desfile de ternos desproporcionalmente maiores que os caras dentro deles.
Dá o play e vem
Last dance é mesmo sobre dança. Na minha cabeça, o basquete está muito próximo do balé: a quadra é o palco onde se apresentam os personagens, incorporados por esses bailarinos de extrema habilidade física, que criam espetáculo com o corpo, que desenham linhas imaginárias no espaço. São ambientes de busca da excelência, de disciplina, de treinamentos rigorosos, de suor, sangue e lesões. O corpo como veículo de uma linguagem sofisticada: música ou estratégia. No jogo, os pontos e regras são apenas pretexto para provocar a motivação dos personagens, as intrigas entre eles, os arcos narrativos das equipes, as tensões e conflitos enquanto a competição avança.
Basquete e balé também se parecem por serem espetáculos interessantes de assistir, ainda que nem sempre você entenda a história acontecendo ali — além de costumarem ter ingressos salgados.
Neste ponto onde o leitor ou leitora entendida de basquete revira os olhos e discute mentalmente comigo que pontos e regras certamente são mais do que isso, ou até desiste de ler porque ficou evidente que não estou levando o basquete tão a sério ao escrever essas poucas linhas, tomo a liberdade de aproveitar essas desistências para dizer que, enquanto acompanhava a saga heróica de Michael Jordan se estabelecendo no Olimpo dos gigantes do esporte, pensei: “devia ser um porre trabalhar com Michael Jordan. Cara chato!”. Um babaca em diversas ocasiões. Eu duvidava que ele fosse um cara que fizesse muitos amigos.
Aliás, estou para ver alguém que pegue ranço de gente mais fácil do que Michael Jordan. Ele preserva mágoas como quem cultiva levain para fazer pão de fermentação natural. Põe de molho num potinho e deixa fermentando a vida inteira.
No sétimo episódio, o próprio Michael Jordan concorda comigo.
Quando perguntado pelo documentarista se a sua intensidade em quadra apagou sua imagem como cara legal, Jordan responde:
“Vencer tem um preço. A liderança tem um preço. Pressiono pessoas quando elas não queriam. Desafiei pessoas quando elas não queriam. Dentro do time, você segue o padrão do meu jogo, e eu não aceitava menos que isso.”
Michael Jordan, “The Last Dance”
O sexto episódio começa com Jordan num set de filmagem, falando para a câmera: “é engraçado, muitos gostariam de ser Michael Jordan por um dia ou uma semana, mas acho que não entendem que não é divertido.”
Ele repete a mesma fala algumas vezes, até o diretor ficar satisfeito com a atuação. Essa cena estabelece a noção de que mais do que um atleta, Michael Jordan é um papel.
Assumir o papel de quem quer elevar o nível do jogo tem um preço. Alguém que provoca aliados e rivais a darem o seu melhor não tem como ser “legal”. Mesmo escolher o papel de pessoa “legal” que é amiga de todo mundo tem seu preço. Assumir o papel do vilão também tem seu preço. Ou o do segundo lugar. Mesmo quem quiser apenas o papel de pedra no canto do palco, que não faz nada, não mexe com ninguém, não fede e nem cheira: tem seu preço.
Você pode escolher o papel de Cisne Negro, claro, mas vai pagar por ele: vai doer, outras bailarinas vão adorar passar por cima de você para ficar com o papel, seus pés vão sangrar, penas vão sair da sua pele e você vai ter surtos delirantes envolvendo sexo e assassinato, mas é apenas o preço que esse papel vai cobrar. Você não leu as letras miúdas?
Pagamos investindo energia, pagamos abrindo mão de outras possibilidades, pagamos tendo que aguentar a pressão, pagamos ao sofrer com incertezas ou rejeições, às vezes pagamos literalmente com dinheiro; não é papo de “vencedor” ou apenas de quem deseja o “topo”: pagamos o preço de ocuparmos a posição que escolhemos no momento, seja ela qual for.
Manter-se nessa posição ou assumir um outro papel que queremos representar é uma questão de escolha. A escolha da posição que achamos que conseguimos bancar.
Até Michael Jordan pagou o preço da sua escolha de largar o basquete e virar um jogador (ruim) de beisebol por um ano. Você, jovem, também pode jogar tudo para o alto e escolher trocar de papel, se o que você representa hoje não te satisfaz. Só não se esqueça que não existe papel grátis.