texto originalmente publicado em março de 2016, na edição #104 da extinta newsletter Bobagens Imperdíveis, e aqui publicado com comentários atualizados da autora.
Passo muito tempo sozinha. O que não tem aqui o significado de “oh, coitadinha, não tem ninguém”. É mais no sentido de ser uma rotina mesmo. Tem a ver com o tipo de trabalho que escolhi para mim. Se eu tivesse escolhido trabalhar com música, por exemplo, talvez isso seria um pouco mais difícil. Teria que trabalhar com uma banda, frequentar estúdio, fazer shows, ensaiar com outras pessoas.
Acredito que já tenhamos superado o momento de achar que trabalhar em casa é molezinha, à medida que os artigos no Medium a favor do home office foram sendo, aos poucos, substituídos por textos do tipo “a grande mentira de trabalhar em casa” ou “como passei a trabalhar em casa e deixei de ser produtivo”. Então vou pressupor que você sabe (ou imagina) que não é nenhuma maravilha trabalhar em casa, sozinha. Não que algum dia eu tenha nutrido alguma ilusão de que seria diferente.
Para muita gente, o que jogou água nesse chope de trabalhar em casa foi a procrastinação. Muitos estímulos, muitas oportunidades de simplesmente deixar o trabalho de lado e tirar uma soneca, jogar video-game ou fazer uma faxina surpresa no armário. Para mim, o perigo é outro. É não ter mais noção do quanto eu estou trabalhando, porque o trabalho acontece também no meu lugar de descanso. E aí acabo trabalhando sem parar.
nota da autora: ler nesse texto coisas que não são mais realidade me fizeram perceber o quanto amadureci nos últimos anos. Consigo ter uma relação mais saudável com o trabalho, hoje. Tempo é tudo.
Entro num vórtice tão pirado que esqueço de coisas meio básicas, como beber água. É possível que eu tenha passado dias inteiros sem beber um único copo d’água – não sei o que acontece, simplesmente não sinto sede, meu corpo foi adaptado para viver em cenários desérticos, tipo Brasília ou o mundo de Mad Max. Mas é algo que não posso permitir, tenho que me esforçar, criar o hábito.
Porque o corpo cobra. E não quero esperar meu rim cuspir alguma pedra na minha cara para me lembrar de tomar água.
nota da autora: aproveite o lembrete e tome água agora.
O único marco capaz de me despertar dessa rotina de trabalho é quando, todos os dias e pontualmente às 19h30, Aurélio, meu gato sistemático (o preto), vem me cutucar para eu ir à cozinha servir a comida dele. Não digo “cutucar” no sentido figurado: ele fica de pé e usa a patinha para me dar tapinhas no braço, enquanto mia insistente como quem diz “faz o favor de sair da frente desse computador?”
Isso me irritava, e eu respondia o gato dizendo para deixar de ser tão egoísta e exigente, que a vasilha de ração nem estava vazia ainda – passar tanto tempo sozinha tem como efeito colateral discutir racionalmente com gatos. Então passei a entender que o interesse dele não era pela comida, e sim em me fazer parar de trabalhar.
Aqui em casa criamos a teoria de que os gatos conseguem sentir vibrações que não conseguimos, e a minha exaustão em passar tantas horas seguidas trabalhando acaba sendo percebida primeiro pelos gatos do que por mim; um cansaço invisível que para eles deve soar como um sino escandaloso que os tira de sua sonequinha gostosa.
nota da autora: a saúde mental dos gatos parece refletir a minha. Eles são muito menos estressados hoje em dia. Agora são apenas folgados mesmo.
Então passei a obedecer o gato – e o fato de eu ter que seguir orientações de um bicho que se diverte com caixas de papelão talvez seja um bom indicativo de que não funciono bem sozinha.
Aí entramos no ponto principal deste texto, que nem é sobre o aspecto “em casa” do meu trabalho, mas sobre o aspecto “sozinha”. Ainda que eventualmente envolva lidar com outras pessoas, meu trabalho é solitário. Preciso produzir, resolver problemas e tomar decisões, tudo sozinha. Ainda que com o apoio de alguém, são atividades que cabem a mim.
Talvez seja isso o que tenha me levado a trabalhar como escritora. Se eu soubesse fazer as coisas de outra forma, como trabalhar em grandes equipes, eu trabalharia com algo como cinema. Seria legal.
Não tenho certeza se foi um pintor ou um escritor que uma vez disse: “encontramos o próprio estilo quando não conseguimos fazer as coisas de outra maneira”.
Desde sempre tenho essa tendência a buscar domínio de todas as etapas necessárias para contar uma história. Por essa razão aprendi a desenhar; queria fazer meus próprios quadrinhos e ilustrar meus próprios personagens.
Tento aprender de tudo que tenha a ver com o que faço e com a forma que quero fazer as coisas.
Tento ao máximo não depender de ninguém. Mas dependo.
No jardim de infância, uma vez a professora nos levou para uma atividade no parquinho. Ela lançou um desafio para entreter (controlar) a criançada: tínhamos que formar duplas ou trios para ver quem conseguiria juntar o maior montinho de areia.
Fiz sozinha, obviamente.
E do jeito mais difícil.
nota da autora: sofrer sozinha, tem narrativa mais cristã que essa?
Queria porque queria fazer meu montinho no canto do parque, o que me obrigava a andar até o outro lado, onde tinha mais areia, e voltar para colocar no montinho, tudo contando apenas com um par minúsculo de mãos para carregar o material.
Eu estava orgulhosa do meu montinho: tinha um formato perfeito, uma consistência homogênea, porque selecionei bem a areia, que era mais molhadinha e escura, o que também fez meu montinho ficar mais firme.
No momento em que olhei para meus colegas, percebi que todos já estavam construindo montinhos três, cinco, até dez vezes mais altos que o meu.
A professora encerrou o tempo e declarou os vencedores, que tinham construído uma admirável torre de areia, apesar de meio torta e disforme. Mesmo os que não ganharam se sentiram aliviados de alguma forma por não terem ficado em último lugar; afinal, ainda podiam apontar para o menor montinho, e esse era o meu.
A história do montinho vem em boa hora porque é exatamente assim que me sinto hoje. Fazendo um esforço imenso para construir algo sozinha, com minhas mãos, mas ver que todo esse esforço não está me levando muito alto.
Sozinha não é impossível, mas é mais difícil e demora muito mais.
Talvez seja um indicativo de que, se posso aprender a dominar todas as etapas do processo, posso aprender a incorporar mais um par de mãos para me ajudar a fazer esse trabalho e, quem sabe assim, construir um montinho maior.
nota da autora: eu não sabia ainda que mais importante que incorporar mais par de mãos é incorporar mais cabeças. Ainda que não trabalhem diretamente comigo e eu continue a maior responsável por tomar decisões, envolver mais pessoas no meu processo só o tornou mais rico.
Mas o fazer sozinha não deixa de ser importante, porque é a base, a estrutura. O fazer sozinha permite desenvolver algumas habilidades importantes, essenciais, que talvez precisem vir antes de mais um par de mãos, de mais gente trabalhando junto.
O fazer sozinha ensina a ser como a aranha.
Sim, a aranha, a de oito patas.
Aranhas são trabalhadoras solitárias. Sozinhas, constroem suas teias – as que constroem teias, claro, porque nem todas têm essa habilidade.
É um trabalho criativo: elas tecem formas complexas e sofisticadas suspensas no ar, feito mandalas ou labirintos, desenhados a partir de um único traço. Tiram de suas entranhas o material – aminoácidos proteicos – que, ao entrar em contato com o ar, cristalizam-se na forma de um fio flexível, elástico, resistente.
Aranhas precisam ser versáteis com seu talento. Usam sua teia para capturar a presa, mas também para construir casulos, abrigos, fazer adornos, guardar o alimento, pular de um lugar para o outro. Também precisam aprender a construir teias diferentes. Experimentar novos formatos. Afinal, cada captura exige uma estratégia diferente.
O resultado do seu trabalho é uma estrutura muito resistente – cinco vezes mais forte do que o aço, tão firme que pode se esticar bastante sem se romper. É algo com consistência, firmeza.
Mas apenas seu talento para criar algo assim não basta. Acima de tudo, a aranha sabe esperar. Trabalha muito, trabalha sozinha, constrói algo bem firme e então espera. Tem paciência.
A espera é importante porque, quando o trabalho é bem feito, a recompensa vem. A aranha sabe disso. E espera.
Fazer sozinha é cansativo, difícil, exige muito. Mas é nesse processo artesanal que se aprende: coisas novas, formas de aperfeiçoar o que já fazemos e, sobretudo, sobre nossos limites.
Sozinha aprendi que preciso de mais tempo para fazer coisas que conseguiria mais rapidamente a ajuda de outras mãos – como construir montinhos de areia bem altos.
Mas de nada adianta oito braços se não for para focar num trabalho consistente, firme, bem feito. Chegar mais alto é bom, mas não é tudo. Crescer rápido não é tudo. É a consistência desse trabalho que permite que não só possamos crescer, mas permanecer.
E é em busca disso que continuo aqui, por enquanto sozinha, com o meu trabalho de aranha.
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