Não vai ter boas-vindas

Se eu precisasse de permissão ou boas-vindas para permanecer num lugar, estava fudida. 

Não costumo contar a história de como virei escritora. É muito rápida. Estava passando, vi a palavra “escritora”, ninguém estava olhando, comecei a usar. Ninguém falou nada. Até agora, ninguém apareceu na minha porta pedindo de volta. Estamos aí desde então.

É assim que se consegue as coisas? Sim, indo lá e pegando. Pelo menos na minha experiência, não acontece de bater aqui o Gugu Na Minha Casa me oferecendo de graça aquilo que eu quero. 

Uma angústia que ronda muita gente é a necessidade de receber validação de um outro. Ocorre muito com artistas; o principal sintoma é a busca impossível por um reconhecimento que nunca vem. Está disponível em vários sabores, escolha aí o seu: validação pelo dinheiro, um título concedido por alguém, um prêmio, número de seguidores, um lugar privilegiado numa lista ou ranking, um convite para fazer parte do clubinho. 

Ficamos à espera desse reconhecimento que vem de fora para sentirmos que somos algo. Talvez você passe por isso, sendo artista ou não. Quando eu ganhar tanto, vou poder dizer que sou escritora. Ou quando meu nome aparecer não sei onde. Ou quando fulaninho reparar que existo. Ou quando o Olimpo Literário me receber de braços abertos: vem, vem ser Pessoa Foda™ com a gente.

Breaking news: não vai ter comitê de boas-vindas! Ou pelo menos, não deveríamos esperar por ele.

A Vanessa respondeu uma das edições da newsletter me escrevendo um desabafo sincero. Pedi a ela para compartilhar um trecho, trazer o papo aqui para o meio da sala. Ela escreve: 

Lancei um livro independente aos vinte e sete e agora tenho um site onde publico meus textos. Mas eu nunca ganhei um centavo com nada disso, meu livro não vendeu (lançar um livro na Bienal foi bem chique, mas bem deprimente), e ainda tenho uma caixa empoeirada guardada no armário. Então acho que por isso eu nunca considerei o que eu faço um trabalho. Acho que nunca me valorizei nesse ponto. No entanto, quando perguntam o que eu faço, digo: sou escritora. E espero a pessoa chegar sozinha à fatídica conclusão de que sou apenas mais uma sonhadora desempregada. Por que o meu cérebro define por trabalho apenas algo que remunere? Será que eu não me respeito como artista e não considero isso um trabalho?

Acredite, estamos todos juntos nesse navio de dúvidas, contas para pagar e eventos sem um pingo de glamour. Respondi a ela o que repito para mim mesma: não podemos confundir valor com dinheiro. Claro, dinheiro é importante: os boletos chegam para todos. Mas é um perigo acreditar que seu valor como artista está relacionado ao número mostrado na sua conta bancária.

Não será um número que vai dizer que chegamos lá. Números são infinitos e por isso uma armadilha: sempre haverá algo maior para alcançar, de modo que a insatisfação continuará nos nossos calcanhares.

Como saber que finalmente somos Pessoa Foda™? Quando chegamos aos 10k seguidores? Quando ganhamos uma plaquinha prateada de uma empresa de mídia gringa? Quando acumulamos 1 milhão de reais aos 22 anos? Quando vendemos dezenas de milhares de livros? Quantos metros uma fila de autógrafos precisa ter para não ser um lançamento deprimente? Quantas vitórias é preciso acumular? De quanto está o placar? Quem está anotando os pontos?

Números dão conta de dizer o que sou? 

A Carla pontuou isso muito bem no seu texto sobre A tirania do quantificável. Ela fala sobre comida, mas encaixa muito bem no nosso assunto: 

Enquanto não conseguimos encontrar um novo caminho como coletivo, talvez um dos grandes alívios que podemos fazer por nós mesmos seja repensar esse sistema contábil incessante, que aplicamos a tudo que tocamos. A tirania do quantificável diz da nossa incapacidade de conviver com um lugar de incerteza, com o insondável e o escuro, e deixa muito evidente a compulsão de tentar controlar as coisas à nossa volta. É muito difícil dar valor a algo que não conseguimos definir direito o que é.

Carla Soares

Enquanto isso, vou me inspirando em quem está acostumada a levar porrada. A Ronda, numa coletiva pós-luta, conseguiu me nocautear com o seguinte pensamento: 

Se você permite que as palmas te façam sentir bem, você também permite que as vaias te façam sentir mal. Aprecio a paixão que vem dos fãs, aprecio que as pessoas se importem, mas não deixo a opinião de pessoas que não conheço pessoalmente afetarem minha felicidade.

Ronda Rousey

Isso me faz pensar que é no trabalho que preciso focar. É o que importa. Porque, diferentemente desse ideal de reconhecimento ou de expectativas que colocamos sobre o tão esperado momento em que seremos aceitos, o trabalho é real.

Por que continuamos esperando que o comitê de boas-vindas nos estenda um tapete vermelho, quando talvez a gente só precise de uma pequena fresta para passar?

Ronda Rousey clicada por Jake Michaels para o The New York Times.

Texto originalmente publicado em março de 2019, na edição #37 de Uma Newsletter.

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