Saber organizar arquivos é uma arte subestimada. Não que eu seja especialista ou algo do tipo, mas cheguei a um sistema satisfatório, que me permite acessar meus trabalhos e fotos e ideias e coisas-aleatórias-que-salvei-porque-vai-que-um-dia-eu-preciso, tudo com a mesma facilidade com que resgato detalhes na minha memória.
Vai ver a mente também funciona como um diretório, um conjunto de pastas, e precisamos fazer determinado caminho para chegar ao arquivo constrangimento_na_primeira_festinha_de_aniversário.txt e, quando não lembramos, culpa da bagunça desgraçada das pastas, porque enfiamos tudo de 2001 para trás na famigerada pasta _old.
Meus amigos ficam um pouco impressionados com a minha memória e o nível de detalhes com que narro acontecimentos do passado, mas lembrar me parece mais uma questão de sintaxe do que de capacidade cerebral; além disso, já entendi que não dá para buscar precisão e verdade em lembranças, porque memória é muito mais ficção que qualquer coisa — como tentei demonstrar nessa HQ sobre a Elvira Vigna.
O processo como a memória se constrói, como vejo, é bem parecido com o das narrativas. É mais fácil lembrar daquilo que se relaciona com a gente e, para essa conexão acontecer, precisamos revestir aquilo de significado e de contexto. Precisa fazer sentido.
Organizar pastas no computador é um pouco disso: construir um caminho que faça tanto sentido quanto uma frase. Assim podemos lembrar de como percorrê-lo, sempre que for preciso.
Reli alguns textos antigos nos últimos dias e me reencontro com o post em que conto o que aprendi fazendo fanzines na adolescência; fiquei extremamente grata pelo meu eu de 2015, que resolveu registrar esse processo num post que ainda me diz tanto.
Porque tem relatos, fotos e vários detalhes (técnicos inclusive) que me fazem lembrar de como eu fazia zines naquela época. Me lembra de quando abracei a tosqueira e minhas limitações porque a diversão estava em simplesmente fazer. Me lembra de quando eu não tinha a menor ideia do que era medo de errar. Também me lembra de quando eu só precisava de uma lapiseira, borracha, caderno e o braço do sofá para fazer quadrinhos.
A importância de manter registros – e saber como acessá-los – está aí: mostrar as mudanças, que se escondem em processos tão lentos que quase imperceptíveis. Às vezes esses registros mostram também o que permanece igual. Outras vezes, mostram o que deixou de existir.
Como um cara na Suécia, que passou a fotografar uma árvore com formato de brócolis. A mesma árvore, dias diferentes, climas diferentes, paisagens diferentes. Fez um perfil no Instagram e começou a compartilhar as fotos da árvore e as pequenas metamorfoses ao redor dela, ao decorrer das estações. A árvore ficou famosa. Brocolli Tree virou até um ponto no mapa. Outras pessoas começaram a fotografá-la, pintá-la. Até que um dia ela apareceu cortada.
As fotografias registram todo esse processo de algo que foi amado até não mais existir. A árvore se foi, mas é impossível desver a árvore. Sua beleza, de alguma forma, permanece. Toda essa jornada foi narrada pelo John Green nesse vídeo muito bonito.
Uma fotografia tem o potencial de dizer muita coisa; mas uma sequência delas conta um outro tipo de história. O fotógrafo Jonathan Holdorf (que tem uma bela newsletter, inclusive), fala sobre como o K-Pop o ajudou a evoluir seu estilo de fotografar. A timeline do Instagram, como ele mostra, pode servir para mostrar como a influência dos clipes coreanos foi aos poucos mudando seu trabalho.
Ele também lembra que um artista deve buscar as mais variadas fontes de inspiração; não é porque você é fotógrafo que só deve se inspirar com outros fotógrafos. Não é porque você escreve que só deve ter escritores como referência. Busco inspiração na música, na ciência, no trabalho de designers, de fotógrafos. É nesse diálogo com outras áreas que mais aprendo sobre escrita.
Uma das minhas referências, por exemplo, é a fotógrafa Maureen Bisiliat, que conheci através do acervo do Instituto Moreira Salles. Ela conta histórias muito interessantes nessa entrevista e não pude deixar de pensar que alguém que está com o olhar treinado para captar histórias acaba desenvolvendo uma memória com um alto nível de detalhes.
Em determinado momento da conversa, perguntam se ela acha se a fotografia se tornou algo banal, se o mundo está saturado de fotografias. Surpreendentemente, ela achava isso há dez anos, não tanto agora. Com o celular, houve uma apropriação mais democrática da imagem, embora ela veja uma diferença entre a fotografia e o que é uma vontade inconsciente de pertencer.
“A tendência da facilidade aparente do digital é a porção de imagens que estão tomando. E aí eu penso: mas aonde vai toda essa informação?”
Organizar é também o movimento de dar contexto e sentido a essa informação. Toda vez que retorno a memórias antigas, algum elemento se modifica, algum detalhe antes oculto se revela. Lembrar pode ser mais que revisitar histórias repetidas ou manter os momentos que considero importantes longe do alcance do terrível esquecimento; lembrar é percorrer o mesmo caminho várias vezes e ver a paisagem se modificando à medida em que também me transformo.
Texto originalmente publicado em fevereiro de 2019. Edição #35 de Uma Newsletter. Assine grátis para receber tudo o que não quero esquecer: