Ontem no almoço resolvi rever um episódio aleatório de Bojack Horseman. O escolhido foi “The Showstopper”, em que ele é o astro de uma série chamada Philbert e interpreta o protagonista, um detetive.
Bem podia ser uma história fechada, que dispensa episódios prévios para fazer sentido: fica na cara que Bojack tem problemas com drogas, que é um ator velho e decadente que machucou muita gente durante a vida e que fatalmente vai fazer algo para se autossabotar assim que sua carreira volta a decolar, como aliás fica claro em cada episódio desse seriado.
Vou contar a história, lê quem quiser: o episódio alterna momentos da série estrelada por Bojack (até a abertura do episódio é a de Philbert, como se tivéssemos escolhido a série errada na Netflix), com momentos dele por trás das câmeras, com seus dilemas pessoais.
Tanto num momento quanto no outro, o tom é de investigação: há a história do detetive que está em busca do ex-parceiro, a quem atribui o assassinato de sua mulher, e há a história do ator que interpreta o detetive, e que recebe um bilhete de um anônimo que ameaça saber seu maior podre. Tanto o detetive quanto o ator (ambos Bojack) partem nessa investigação 100% neurótica para descobrir QUEM está por trás disso. O assassinato, pra um; o bilhete anônimo, pro outro.
Ao decorrer do episódio, a fronteira entre esses dois universos se borra de forma gradual, até que se mesclam: quando o detetive Philbert estrangula a parceira numa cena, Bojack entra no personagem de tal forma que de fato estrangula Gina, a atriz que a interpreta – e que também é sua namorada na vida real. Bojack está há tempos misturando as atuações que representa com a sua própria vida. Disso para começar a misturar realidade com suas fantasias paranóicas e ególatras, foi um pulo. Ou melhor, um punhado de drogas administradas numa irresponsável rotina de automedicação.
As pessoas no set de filmagem intervêm quando percebem que é uma agressão real e impedem que Bojack mate Gina. Quando se dá conta do que fez, ele sai correndo aturdido, mas é para esse mundo fantasioso que ele foge.
No final, vemos Bojack encarando uma versão inflável de si mesmo, que vimos em vários momentos, à deriva no cenário, flutuando sem direção. Agora é sua mente que se desprende por completo da realidade, que paira acima dela, sem mais ponto de contato.
Uma cena anterior apenas realça o peso disso: dormindo ao seu lado, a namorada (ou a personagem da namorada, não sei mais) questiona quem é que ainda usa telefone fixo. E ele diz algo como: “gosto de ter algo pendurado à parede para o caso de eu ter onde me agarrar quando eu sinto que vou sair voando”.
O Bojack voador gigante, assim como o bilhete anônimo que o deixa perturbado o episódio inteiro, são parte da campanha de marketing da série Philbert. Bojack é um produto, mas sobretudo um produto de si mesmo, das fantasias que sua mente produz para justificar a narrativa que ele mesmo criou.
Em uma única unidade dessa história vemos um dilema presente em toda série: Bojack não consegue sair do personagem que criou para si mesmo. Sua vida é a grande atuação. E parte dessa narrativa, constante não importa quantas temporadas passem, é o ciclo de autodestruição para o qual ele fatalmente desliza.
Minha mente desliza para os extremos com muita facilidade. Tudo ou nada. Isso ou aquilo. Realidade e fantasia. Dualidades. Ambiguidades. A favor, contra. Genial, eu sou a melhor do mundo; tá tudo uma bosta, me cancela inteira.
Parece bobinho dizer que eu “sou” muito o Bojack, que me identifico demais com a história ou qualquer comentário do tipo, como se me agarrar à identidade desse ou daquele personagem de repente dissesse quem sou, tal qual um teste do Buzzfeed, e pronto, agora entendi TUDO. Mais que isso, os filhos da puta por trás dessa série conseguem me mostrar o que está acontecendo na minha mente naquele exato momento, mesmo quando dou play num episódio qualquer, sem pensar demais. Ah lá, de novo, um retrato preciso da minha montanha russa interna.
“Ei, é com você”, a série diz. Aponta pra mim, ao mesmo tempo em que aponta para Bojack.
Tem esse detalhe: Bojack, quando sai por um instante de seu delírio, descobre que o bilhete anônimo é parte da divulgação do show, porque, na série, Philbert escreve aquele mesmo bilhete. E é o detetive quem escreve o bilhete porque, no final das contas, é ele o assassino. Nessa hora, a palavra “you” contida no bilhete é mostrada bem de perto, para que não reste dúvidas.
O tempo todo era você.
Você é quem está tentando te prejudicar. Você foi o responsável pelas relações que estragou. É você, flutuando sem direção. É também você criando as narrativas que te prendem na atuação do mesmo papel de sempre. Você, você, você.
A investigação conduzir a essa resposta não torna nada mais fácil. Nem exatamente fornece um ponto de ancoragem quando a realidade parece escapar feito um balão desamarrado. Porque esse “você” é real, existe e toma ações com efeitos concretos no mundo, mas é também o universo onde é possível se perder em fantasias sem saída.
Enquanto isso, habito simultaneamente as duas realidades. Ator e detetive. Fantasia e realidade. Tão duplicada quanto um personagem que é homem e, ao mesmo tempo, cavalo.
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