O sofrimento de uma distância segura

Entendi porque detesto a narrativa do artista que só faz sucesso depois que morre. O estalo aconteceu quando Hannah Gadsby, em seu show Nanette, contou um pouco sobre a história de Van Gogh, que vendeu apenas um quadro durante sua vida, para só depois de morto fazer sucesso.

Sabe por que Van Gogh só vendeu um quadro durante a vida? Porque ele não conseguia se conectar às pessoas, não conseguia se relacionar, fazer o network tão importante para crescer profissionalmente. E ele não conseguia porque tinha uma doença mental.

Há a ideia de que a loucura, a tristeza e o sofrimento é que tornam possível o trabalho do artista. Imagine se Van Gogh se tratasse e se medicasse, não teríamos seu céu estrelado ou os girassóis!

Bem, a questão é que Van Gogh precisava ser medicado sim. Ele comia as próprias tintas, sabe? Hannah conta, inclusive, que ele tomava um remédio para epilepsia que o fazia ver a cor amarela com mais intensidade, o que provavelmente o levou a pintar aquele famoso quadro dos girassóis.

Quanto sofrimento precisa estar por trás da beleza para realmente a admirarmos?

Temos um tesão inexplicável por sofrimento. Nada mais representativo disso que a imagem de um cara torturado, pregado a uma cruz, sangrando, espalhada por todos os cantos do nosso mundo ocidental.

Muitas vezes, no entanto, são os artistas que se tornam o canal onde as pessoas podem ver os mais extremos tipos de sofrimento de uma distância segura.

Olha lá, mutilou a orelha. Pulou do prédio. Morreu de overdose. Perdeu tudo. Coitadinho. Que vida difícil é a da pessoa genial!

Então faz sentido que continue a ser alimentada a ideia do artista como um ser necessariamente perturbado, sofredor, que morre na merda, na tristeza e na miséria. Porque o sofrimento inevitavelmente faz parte da experiência humana, então saber que há alguém passando por algo pior parece aliviar nossa carga; ou ainda uma desculpa confortável para não se dedicar a criar algo grandioso, porque olha lá o que acontece com alguém que tenta!

Como escreveu Alex Castro:

“Jesus morreu por nossos pecados e nunca mais perdemos esse hábito de viver indiretamente através dos outros. Condenamos nossos ídolos a morrer por nós, pois só assim podemos suportar nossas vidas de não-ídolos.”

Está todo mundo mergulhado numa piscina de merda ou lutando para sair dela. Não há um sofrimento pior que o outro, todo sofrimento é sofrimento. Se é uma experiência tão humana, não faz sentido continuar a romantizá-la dessa forma, como se quem sofresse fosse mais especial. Como se sofrimento fosse pré-requisito para ser gênio. Não é. Ninguém precisa de sofrimento para produzir coisas belas e geniais, nem os artistas de quem gostamos, nem você.

Quero distância dessa narrativa do artista que passa a vida na merda e só é reconhecido depois da morte – muitas vezes reconhecido por causa do seu sofrimento; seja sua miséria, sua loucura, sua depressão, seu suicídio. Essa narrativa não faz bem a ninguém.

Como artistas, em vez de pensar que precisamos sofrer para produzir coisas belas e geniais, podemos pensar que não precisamos do sofrimento para nada; e mostrar, através da nossa arte, que é possível sair do sofrimento. Que há sempre uma saída.


“És autêntico ou apenas um ator? És um representante? Ou a própria coisa representada?”

– Friedrich Nietzsche, em Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo.

Leitura Complementar

– Por que a escritora Hilda Hilst não fez sucesso em vida? Explicado em quadrinhos.

– Incrível o documentário “Arthur Miller: escritor”, da HBO. Sobre a vida e trabalho do dramaturgo americano que escreveu “A morte do caixeiro viajante”, “As bruxas de Salem” e “Depois da queda”. Fiquei muito inspirada.

– Você não tem que viver em público, texto muito necessário do Austin Kleon.


Texto originalmente publicado em julho de 2018, na edição #24 da minha newsletter. Assine e receba textos como esse no conforto do seu email: