Se há uma certeza, é a de que vamos todos morrer. Se há duas certezas é a de que vamos todos morrer e que, antes disso, vamos todos ser mal-compreendidos.
Me mudei há poucas semanas e, apesar da minha bagunça ainda estar se adaptando ao lugar (casa é onde a BAGUNÇA está), já estou totalmente à vontade. Uma das coisas de que sinto falta do apê antigo (onde vivi até então meus anos em SP), apesar de vez ou outra ser uma inconveniência, eram as paredes finas que me faziam sentir dentro da casa e da vida dos vizinhos.
Ouvir conversa dos outros me dá um prazerzinho. Na mesa do lado do restaurante, no meio da rua, no parque, na casa ao lado, no metrô, não importa: onde houver alguém falando alto pra caralho, lá estarei tentando tomar nota.
Meus antigos vizinhos eram meus principais fornecedores de conversas alheias: ajudava o fato de só conversarem aos gritos, no mesmo tom que se grita com o juiz de uma partida de futebol (sim, o cara gritava com a TV enquanto assistia ao jogo. Sim, era uma casa de palmeirenses).
Começou a chamar a minha atenção o fato de que toda vez que o casal discutia, não importava qual fosse o motivo, era sempre possível ouvir:
“O QUE EU TÔ TE DIZENDO, PAULO, É QUE…”
Ou: “EU NÃO DISSE NADA DISSO, Ô SANDRA”
Ou ainda: “EU JÁ TE FALEI QUE…”, “O QUE ELE DISSE FOI…”, “VOCÊ NUNCA ME ESCUTA QUANDO DIGO QUE…” e variações.
Quer dizer, a briga era sempre sobre um não entender o outro. E eu ficava do outro lado da parede, comendo minha pipoquinha e tomando café (melhor combinação), e pensando “mas meu deus, eles estão falando da MESMA coisa”. O ser humano me fascina.
Na história que estou escrevendo no momento, esse é meu principal objeto de estudo: investigar como as pessoas conversam. Como as dinâmicas de diálogo são fundamentais nessa minha investigação, passei a usar isso como pretexto para ficar de butuca nas conversas alheias. Ei, não é bisbilhotagem, é trabalho!
Você já reparou em COMO as pessoas conversam? Você já parou para ouvir um pequeno trecho de um papo entre desconhecidos e tentou identificar, mais do que a fofoca em si, a ESTRUTURA da conversa?
Em muitos dos diálogos que captei com minhas anteninhas de vinil, as pessoas falavam sobre o que outras pessoas falaram. “Então ele falou que…”, “Daí eu falei…”, “Ela me contou que…”, etc. Quer dizer, elas estavam falando sobre outras conversas!
Por que isso acontece? O que estamos tentando dizer com isso?
A hipótese mais evidente é a de que nossas histórias acontecem através das conversas, especialmente aquelas que envolvem outros personagens além de nós mesmos: uma situação que vimos acontecer ou que vivemos com outras pessoas. Ao contar essas histórias, necessariamente contaremos os diálogos que as fizeram avançar.
Minha outra hipótese é a de que as pessoas estão, em boa parte das conversas, tentando constantemente se fazer entender.
Palavras ou tom de voz com sentido ambíguo, nuances (essa palavra nem existe!), dizer uma coisa tentando parecer outra, não encontrar a combinação certa de palavras para se expressar; enfim, são muitas as camadas que precisamos atravessar para chegar no que a pessoa realmente está querendo dizer.
Isso porque ninguém nunca está dizendo exatamente o que quer dizer o tempo todo. Não sei se é uma característica da língua portuguesa, da cultura brasileira ou do ser humano de forma mais ampla, mas parece que estamos o tempo inteiro contornado o assunto de verdade, sem nunca dizê-lo diretamente.
“O que ela vai pensar de mim se eu disser isso? Não, imagina, não posso ser tão direta ou vai me achar babaca. Mas se eu tentar pelas beiradas, quem sabe ela se toca e capta a mensagem?“
Tenho assistido ao programa de entrevistas do Seinfeld, Comedians in Cars Getting coffee, e num dos episódios uma moça vai conversar com ele e seu entrevistado, enquanto eles estão na calçada de um café. Eles trocam algumas palavras e se despedem, muito gentilmente. Depois disso, Seinfeld diz para seu entrevistado (já não lembro mais quem era, sorry):
“Não é incrível quando a gente pode encerrar uma conversa apenas dizendo ‘foi um prazer conversar com você?’ Não ‘é um prazer’, mas ‘foi um prazer’, pra deixar bem claro que aquela conversa terminou e que você quer que a pessoa vá embora”.
Fica mais fácil decifrar as relações se pensarmos que falamos uns com os outros através de enigmas o tempo inteiro.
Você joga um “oi, sumido”, e espera que o outro entenda o que você quis dizer, ou espera justamente que o outro não entenda mesmo, fique na dúvida e tente devolver uma resposta com um sentido ainda mais ambíguo, levando o diálogo a um ponto em que ninguém mais sabe se aquele emoji no final da mensagem foi usada como um high five, mãozinhas orando em gratidão ou como um gesto de implorar pelamordedeus, por favor, eu não aguento mais tanta indefinição.
Por isso os memes são tão confortáveis. Se a outra pessoa conhece o meme, está tudo certo, todas riem, se entendem, acham ótimo (e por isso todos tão preocupados em não perder o grande meme do momento, apenas porque querem arrumar um novo código de significado fácil, para sacar da manga em situações de emergência, quando precisarem ser entendidos por alguém sem muita dificuldade). Meme serve para entendimento instantâneo.
Haveria um custo social alto se tentássemos ser diretos o tempo inteiro. Nossa sociedade está erguida sobre uma estrutura frágil, franzina, raquítica, fina como uma lâmina de mussarela, que desabaria sobre nós deixando uma multidão de vaidades mortas e egos gravemente feridos se não fizéssemos tanto rodeio.
E também porque você parece bem menos psicopata se diz “foi um prazer conversar com você” em vez de um “ok, agora quero que você vá embora”.
Mas acredito que todos esses ruídos aconteçam mais por nossa completa INCOMPETÊNCIA em nos expressarmos do que pela tentativa de preservar essa sociedade frágil. A linguagem é uma ferramenta que manejamos tão bem quanto o excel (eventualmente a gente se pega tendo dificuldades e pensando “quem inventou esta MERDA, isso não faz sentido!”).
Não tenho dados para generalizar com mais tranquilidade, mas posso dizer que a raiva vem quase sempre da frustração de não ser entendido ou de não entender o outro.
Pense em qualquer situação onde as pessoas se exaltaram, ou discutiram a ponto de se chatearem uma com a outra, passaram um pouco do ponto, quem sabe até se agrediram.
É bem provável que a situação tenha começado porque alguém entendeu errado o que o outro disse, o tom pareceu atravessado, a discordância não conseguiu ser transmitida de forma saudável, as palavras foram levadas ao pé da letra demais ou de menos, ou não foram encontradas palavras melhores para o conflito não desancar de vez para o barraco.
As palavras, sempre elas.
Eu me lembro da primeira vez que me frustrei por não ser entendida. Eu tinha uns 2 ou 3 anos de idade (sim, eu tenho mesmo memórias bem antigas), e minha tia me levou para uma caminhada. Passamos numa vendinha onde ela sempre me comprava um chiclete ou docinho, e daquela vez ela me perguntou qual eu queria.
Eu sabia qual chiclete eu queria. Ele tinha a forma de um ovo de dinossauro, e vinha numa miniatura de caixinha de dúzia de ovos. Veja, naquela idade eu não tinha a mesma eloquência magnânima que tenho hoje; eu dispunha de bem menos recursos para me comunicar, então eu não consegui alcançar com meu limitado vocabulário a imagem que era bem clara na minha cabeça.
Não lembro o que falei, mas seja o que for, não era nada parecido com “eu quero o chiclete de ovo de dinossauro, por favor”; porque quando minha tia se abaixou para me dar o chiclete, percebi que ela tinha comprado o Bubbaloo. E, desde então, passei a odiar Bubbaloo com todas as minhas forças.
O sentimento que me atingiu nesse episódio se repete com alguma frequência na minha vida. Está entre uma das piores sensações a de sua fala não conseguir traduzir seu pensamento. Certo, talvez não seja pior do que a sensação de vomitar (o vômito é a menor dosagem de sensação de MORTE que uma pessoa pode experimentar sem morrer de fato), mas enfim, você entendeu.
E se não entendeu nada, normal, faz parte.
Estamos nessa vida para não nos entendermos mesmo.
Texto originalmente publicado em Uma Newsletter #17, de fevereiro de 2018.
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