Resolvi morder a isca. O texto estava repercutindo com base na indignação de colegas da literatura fantástica, que discordavam do autor em vários níveis; daí, contra minha política de dar clique de indignação (o principal motor da mídia), não só fui atrás do texto para ler, como resolvi escrever sobre.
Olha, eu não conheço o autor, Santiago Nazarian, nunca li nada dele. Os comentários estou fazendo em relação ao seu texto, que é este. Não sei do que se trata o trabalho do colega, é um nome novo pra mim. O que talvez explique a motivação para escrever um texto desmerecendo o trabalho de tanta gente: é sempre bom ser notado.
Acho que ele traz bons pontos para debate. Embrulha isso num papel celofane de achismos baseados em informações equivocadas? Talvez, mas faz parte desse jogo de tentar cravar verdades para o todo partindo de percepções e vivências particulares. Também faço isso um bocado, como eu poderia julgá-lo por isso?
Inclusive, pode ser que eu use um celofane parecido para embalar este texto, porque é segunda de manhã, dormi de maquiagem, não tenho interesse em rebater de forma articulada ponto a ponto, não posso falar em nome de um meio literário especulativo, porque nem me considero uma autora exclusivamente do gênero fantástico (conforme escrevi aqui); portanto, vou escrever sobre o que me incomodou de forma muito pessoal, porque a única coisa que me interessa é meu precioso ego.
Sobre as informações equivocadas a respeito da produção literária no Brasil, o Bruno Matangrano, pesquisador e autor do livro “Fantástico Brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo”, escreveu uma resposta muito boa, da qual eu destaco:
A verdade é que o Fantástico sempre esteve em nossa literatura, o povo só não percebia (ou fingia não perceber). Nem vou falar dos do Século XIX (Machado, Inglês de Sousa, Álvares e Aluisio de Azevedo, etc. etc.), mas no XX, quase todos os “grandes nomes” escreveram fantástico:A lista é imensa: Graciliano, Guimarães, Lygia, Suassuna, Verissimo, Murilo Rubião, J. J. Veiga, Scliar, etc. etc. É muita gente boa escrevendo fantástico. (Há levantamentos minuciosos nas minhas publicações e dos amigos e colegas que citei acima). Só não vê quem não quer.
Bruno Matangrano
Então vamos ao trecho do texto de Santiago que mais me incomodou:
O Brasil não tem uma tradição no fantástico —e isso também não chega a ser uma explicação, é outra consequência. Enquanto na América Latina existem correntes importantes de realismo fantástico, no Brasil o “realismo concreto” sempre imperou. Arrisco uma razão: a extensão territorial e a miscigenação do nosso povo fez com que a produção cultural/artística nacional se sentisse sempre na responsabilidade de explicar nossa identidade, retratar nossa realidade.
Santiago Nazarian, em artigo para a Folha de S. Paulo: “Eterna promessa, literatura fantástica brasileira nunca decola”
Incomoda não só porque parte de uma premissa falsa “o Brasil não tem tradição no fantástico” (como rebatido pelo Bruno no trecho que destaquei), mas porque o que ele “arrisca” ser a causa disso são os fatores extensão territorial e miscigenação do nosso povo.
Adoro quando um argumento cai na caçapa do “ah, porque o brasileiro é miscigenado”. O legal de usar essa cartada mágica é porque 1) é verdade 2) é ambíguo o suficiente para ser usado a favor ou contra qualquer aspecto de brasilidade em discussão e 3) pode ser usado para validar uma informação completamente falsa. Só pensar no mito da democracia racial, que parte do fato “miscigenação do povo brasileiro” para lhe atribuir certas características, ainda que questionáveis (“povo cordial e alegre, essa linda mistura de raças”) de forma a validar um ponto (“portanto somos uma democracia racial”) ainda que seja a mais completa mentira!
Pode não ter sido a intenção do autor, mas, quando escrevemos e publicamos, as palavras deixam de ser só nossas e atravessam as pessoas de formas bem diferentes, porque a beleza e a tragédia desse ofício estão neste ato de perder o controle. Então, quando ele elenca como entraves para o desenvolvimento do fantástico no Brasil tanto “a extensão territorial” quanto “a miscigenação do nosso povo”, suas palavras ecoam (na minha interpretação, é preciso frisar isso para a internet!!!) com o discurso de outras pessoas, de outras épocas, que em outras situações também viam (e veem) esse território gigantesco cheia de gente mestiça como a causa do atraso e da dificuldade de impor um modelo de “civilização”.
A miscigenação no Brasil foi (e é) um processo violento e complexo demais para ser usado como resposta simples para o que quer que seja. Ao mesmo tempo em que, por diversos motivos e em diferentes momentos da história, tenha sido usada como instrumento para embranquecer a população e arrancar dela seus traços culturais indígenas e africanos, a gente fruto desse processo, especialmente enquanto parte das classes sociais mais baixas, sempre foi desprezada e deslocada para um não-lugar.
O gentílico [brasileiro] se implanta quando se torna necessário denominar diferencialmente os primeiros núcleos neobrasileiros, formados sobretudo de brasilíndios e afrobrasileiros, quando começou a plasmar-se a configuração histórico-cultural nova, que envolveu seus componentes em um mundo não apenas diferente, mas oposto ao do índio, ao do português e ao do negro. A consciência plena dessa oposição só seria alcançada muito mais tarde, mas a percepção dos antagonismos e diferenças se dá desde as primeiras décadas. (…) Denota-se na inquietação do funcionário real que, dois séculos após a descoberta (sic) do Brasil, se pergunta se um dia chegará aquela multidão mestiça, se entendendo em tupi-guarani, a falar português.
Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro”, os grifos são meus
Até a palavra “mestiça” carrega um tom pejorativo, uma carga negativa, parece feia de todos os ângulos. Quase uma ofensa. Porque aponta para alguém que não é puro. Que não é uma coisa nem outra. Um desvio da norma. Esse Outro que existe de uma maneira incômoda porque não se encaixa em nenhum manual preexistente. Esse alguém que não é ninguém e que portanto pode ser quem quiser.
(até considerei se deveria tascar logo essa palavra no título, mas ei, se um homem branco pode fazer títulos polêmicos para caçar cliques, eu também quero!)
Justamente dessa falta de definição e de rótulos prévios, calhamos de ser esse povo que precisa investir, cotidianamente, na descoberta de quem somos e de onde viemos, como Darcy Ribeiro tenta ilustrar em seu “O povo brasileiro”. Tem povo com mais vocação para o fantástico do que aquele que precisa se inventar todos os dias?
Então, quando Santiago escreve que “a miscigenação do nosso povo fez com que a produção cultural/artística nacional se sentisse sempre na responsabilidade de explicar nossa identidade, retratar nossa realidade“, eu fico sem entender, de verdade. Primeiro, de onde surgiu essa relação de causa “povo miscigenado” = “responsabilidade de explicar nossa identidade, retratar nossa realidade”? Segundo: E DAÍ? É um problema se voltar para a nossa identidade? Como retratar nossa realidade pode anular ou mesmo concorrer com a produção do fantástico?
(vai vendo porque detesto essa coisa de rotular gêneros, vou linkar esse texto de novo sim)
Pra mim, aliás, não existe uma divisão entre um e outro. Mesmo os mais mirabolantes cenários e as histórias mais fantasiosas partem desta realidade, a realidade na qual sua autora come feijão no almoço, lê as notícias do dia e tenta pagar as contas. É só da minha vida que posso tirar a matéria que vou transformar em histórias, sejam elas fantásticas ou não: as pessoas que conheci, as conversas que tive, as leituras que me tocaram, as experiências que vivi.
Desse modo, toda literatura é, em algum nível, identitária.
Cada gesto criativo nosso, uma vez esboçado, está condenado a cair nesse reduto, que é o universo a que pertencemos.
Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro”, pg 241
Há algum tempo (não sei se esse preconceito continua em voga), a chamada “autoficção” era considerada algo inferior, menos “imaginativa”, sobretudo se produzida por mulheres; nunca entendi direito, porque não vejo como pode ser possível criar ficção sem usar, de alguma forma, a própria vida como material. O problema, me parece, tem mais a ver com qual vida está produzindo a ficção em questão.
Em outro trecho, o autor escreve o seguinte sobre a escritora Ana Paula Maia: “talvez o mais bem-sucedido desses três tenha sido o livro de Ana Paula, não apenas pelo ótimo texto, mas exatamente por não conter elementos fantásticos e se afastar das convenções do que se chama terror (além, talvez, de carregar uma bandeira involuntária, por ter sido escrito por uma mulher negra).”
E quando um homem branco escreve um livro, este também encontra-se diminuído por uma “bandeira involuntária”? Ou só o Outro carrega bandeiras?
Essa foi uma das várias questões que me deixaram confusa nesse texto. Ele tenta estabelecer um patamar de sucesso que a literatura fantástica feita por gente daqui supostamente não conseguiria alcançar, mas que sucesso é esse?
Vejamos: é ser adaptado para o cinema? Passar na Globo? Quantas e quais obras precisam chegar lá para o gênero ter “decolado”? Sucesso é vender pra caralho? Quanto? Mas não pode atingir demais a massa porque “literatura de entretenimento comunica-se com o instante, mas não tem lastro para permanecer”. Então o quê? Ser sucesso de crítica? Qual crítica? Quem pode dar essa validação? E carregar bandeiras políticas ou identitárias, pode? De quem?
Não é curioso que a literatura, para ser satisfatória, precise atingir esse ideal de pureza que está sempre num outro lugar, num outro gênero, numa outra mídia, mas nunca em nós mesmos, na nossa realidade, em quem somos? Isso sim é mentalidade colonizadora instalada com sucesso!
Tal qual lusitanos de outrora, que chegaram aqui e duvidaram que essa “gente mestiça” fosse um dia capaz de falar português, há ainda hoje quem acredita que aquilo o que fazemos com o idioma não é o suficiente para ser literatura, ou boa literatura, ou literatura de sucesso. Talvez porque fruto dessa mistura de vozes e realidades tão diferentes, talvez porque seja parte indissociável desse processo – pessoal ou coletivo – de descobrir quem somos e quais histórias somente nós podemos contar, não importa qual dosagem de realidade elas carreguem.
Ou talvez por medo de que, misturadas às vozes e narrativas vindas de diferentes realidades, todas igualmente válidas para a construção dessa identidade literária brasileira, a narrativa do homem branco em seus dilemas existenciais de meia-idade (no caos da cidade grande ou dentro de um foguete, sei lá) seja vista como o que realmente é: só mais uma narrativa possível, não mais a única aceitável.