Vozes existem.
Vorazes.
Pelas matérias.
São as palavras que abrem a peça Vaga Carne, de Grace Passô. Um texto que me deixou apaixonada pela dramaturgia da artista que já tinha me encantado pela atuação muito sensível no filme Temporada, sobre o qual escrevi aqui.
A protagonista é a palavra. A linguagem em pessoa. Uma voz errante que encarna em coisas (vivas ou não) para experimentar o sabor da existência a partir das substâncias que compõem os seres e objetos. Patos. Cremes. Cafés. Cavalos. Estalactites!
A palavra vaga, até entrar no corpo de uma mulher negra. É o cenário onde a história acontece:
Nada é oco por aqui. Não, não é oco.
Tudo tão deslizante, como os cremes.
Escuro, tudo escuro. Escuro.
Se virássemos este corpo ao avesso, vocês entenderiam: aqui é um lugar escuro, escuro.
(…)
Estão ouvindo? Você ouve, coração? Pulmão? Sangue? Osso? Lá fora existe um bicho feroz, coisa de manter flechas e armas nas mãos! Sabem que nome tem esse bicho? Sabem como se denomina esse bicho? Sabem que nome tem?
O olhar dos outros.
Aqui dentro não entra o sol, o sol não entra, mas também não faz falta nenhuma. [Para o público.] Peço que me escutem pra que vocês tenham consciência de si mesmos, é tudo escuro dentro de ti, ti, ti e ti e ti. E também não são objetos, não, é uma vegetação, ou… uma… máquinas, tudo move, move, move, percebem?
O livro me deu vontade de colocar palavras na boca, especialmente as que ainda não são minhas. Falou diretamente com a linguagem que mora em mim e que aprendeu a habitar este corpo.
A voz demonstra que a existência expande quando o vocabulário aumenta (“vamos invadir o corpo dessa mulher com palavras! vamos ocupar o corpo desta mulher com palavras!”).
A voz aprende, dentro da existência humana, que há um território desconhecido para ela, um universo muito além da linguagem. Experimenta o esquecimento, o vazio, a falta.
É o vazio. É como a imagem de uma luz num cômodo vazio. É o deserto. Esquecer é o deserto. Sustar a memória, que matéria! Eu te amo, esquecimento. É sério, eu estou apaixonada. Que nada absoluto, que vagação sem rumo, esquecer é gostoso demais, esquecer é meditante. Como não estive antes em ti, esquecimento? Que…
Um texto que só pode ter vindo do lugar de alguém que é carne e sobretudo linguagem. Que tem tanta intimidade com as palavras que as coloca para brincar. Que cria um universo mágico dentro de um único corpo. Escrita fantástica é isto.
Grace Passô, me possua.