“Mas junta água em tudo quanto é lugar aqui, hein?” Fundo de um quintal: garrafas, pneus, restos de telhas. Coisas velhas que se acumulam fora da vista. Na cena, três agentes de combate à dengue. Coletes azul, bolsa à tiracolo. Dois mais experientes, uma novata em treinamento. Juliana não é dali.
Vinda de Itaúna, Juliana chegou a Contagem, na região metropolitana de BH, chamada para trabalhar 2 anos depois de ter passado no concurso para o cargo. Mudança meio de supetão: foi tomar posse, arrumar uma casa para morar e se adaptar ao novo estilo de vida (mais simples, talvez) enquanto o marido, que ficou em Itaúna, prepararia-se para mudar em seguida.
De repente, cidade nova, conhecer pessoas diferentes, aprender sobre o novo trabalho — e chocada descobrir que é comum, nada fora da realidade, ter que pinçar escorpiões pelo rabo. Tudo isso sozinha. É assustador um cenário de mudança como esse. Pra quê enredos mirabolantes e antagonistas com sede de destruição? Os conflitos permeiam o tecido do dia a dia, as relações cotidianas e os problemas de pessoas que poderiam ser eu ou você. Isso já é o suficiente para criar uma história muito envolvente, na qual a paisagem que se transforma diante dos nossos olhos são os próprios personagens.
Escrito e dirigido pelo mineiro André Novais Oliveira, o filme Temporada é bem o tipo de história que gosto de ver – porque é também o tipo de história que gosto de escrever. Com o tipo de vida e de cidade com as quais me acostumei, mas que quase não vejo bem representado na ficção, o filme faz a mágica de contar, por meio de cenas que me soam tão familiares e próximas, uma história de rupturas dramáticas, do tipo que acontecem silenciosas no escorrer dos dias.
De boas, cafézim pelando, véi. Chama a atenção a naturalidade dos diálogos, as gírias, o tipo de assunto. Como se eu conhecesse aquelas pessoas. O sotaque mineiro tem esse poder de me fazer sentir em casa, talvez.
Ou vai ver é o conteúdo da fala: conversas sobre as regras do trabalho (a meta é visitar 20 casas ao dia, 25 só quando o pessoal da secretaria aparece), sobre o crescimento da cidade, sobre o lago da Pampulha (“tem mó cheiro de feijoada, aquilo é um esgoto!”), sobre os planos de futuro (comprar um carro, abrir um salão), sobre os problemas no casamento, sobre os traumas deixados pelo passado.
Apesar dos diálogos dizerem muito sobre quem são os personagens, é a fotografia que conta boa parte da história: ângulos abertos para mostrar personagens e cenários tão integrados que quase indistintos. A cidade que absorve a vida de quem mora ali?
Com poucas palavras, as imagens conseguem revelar que Juliana está no início desse período de transição, que vem de outra cidade, que a situação com seu marido está complicada, que ela se sente sozinha e encurralada nesse novo cenário. É como olhar para uma sequência de fotos, disposta numa galeria. Ou para um bocado de porta-retratos e quadros com fotos antigas espalhados na sala de uma senhora no meio de Minas Gerais. Basta olhar para entender.
A atuação é também responsável por essa sutileza, ao contar a verdade em pequenos gestos: nunca servir um salgadinho numa vasilha foi algo tão dramático, na pausa para contar sobre um aborto sofrido.
Entre histórias de perdas, separações, abandonos e mortes, a mudança aparece como o grande tema. Vemos Juliana se transformar em uma versão mais corajosa de si mesma (muda de endereço sozinha, sobe no telhado, assume o fim do casamento, fica com outro cara, começa a se abrir para os novos amigos, corta o cabelo, permite-se acelerar o carro e deixar os outros pra trás), e no percurso acompanhamos as pequenas mudanças que também conduzem os demais personagens.
Russão, por exemplo: o cara mais zoeira do grupo, que gosta de jogar Playstation e se identifica com os jovens estudantes que brincam de pebolim no recreio, descobre-se de repente pai de um garoto de 3 anos. De acomodado com o trabalho que paga pouco, transforma-se num potencial empreendedor, disposto a aprender uma nova profissão.
Uma cidade pacata parece ser um cenário de estagnação. Mas ali tudo está em movimento.
Por isso tão incrível que seja uma história protagonizada por agentes de combate à dengue, os verdadeiros heróis da vizinhança, que podem não usar capa ou ter poderes, mas pedem licença para entrar e se metem nos cantos mais perigosos dos quintais com a missão de não deixar água parada por onde passam.
Quando Juliana puxa a lona que cobria uma piscina abandonada no quintal de um morador, liberta um enxame de mosquitos, movimentando o que antes era um perigoso foco de estagnação, revelando o que antes estava escondido. A cena representa o que acontecia na sua vida naquele momento: uma grande libertação. Nesse ponto da história, Juliana já é outra. E bastou o mínimo de movimento para que as transformações viessem como uma correnteza.
É fácil se identificar com a história de Temporada: deixar uma vida para trás, ir trabalhar numa cidade nova, ser por um tempo um forasteiro. Costumo pensar em mim como uma pessoa de vida estável, pouco inclinada a grandes mudanças (progressista nos ideais, conservadora na rotina, sorry); mas, pensando bem, já passei por esses momentos algumas vezes.
Quando vim para São Paulo, encarava a mudança mais como um deslocamento de endereço. Para uns 1000 km de distância de onde passei boa parte da vida; mas o que são grandes distâncias nesses tempos de internet, onde posso trabalhar de qualquer lugar, onde posso me manter conectada com as pessoas que ficaram?
Eu pensava isso antes de vir, que a distância não influenciaria tanto. Mas fazer um movimento de 1000 km é fazer um movimento que exige muito esforço, e tanto esforço representa uma intenção profunda de mudar as coisas. Resultado: mudou tudo.
Mudou meu trabalho, meu cabelo, meu estilo, minha casa, meus interesses, meu jeito de falar, meu ritmo. Ando mais rápido e falo muito “mano”. Chegar numa cidade nova é afundar nela devagar, até um dia, eventualmente, tornar-se a cidade.
Da mesma forma, escuto tantas histórias de amigos que vão trabalhar em cidades pequenas ou vão embora para o interior ou que já moraram em outros países ou que, como eu, vieram para a cidade grande ou que cresceram como nômades, pingando num monte de cidades, e as absorvo todas; sinto que são minhas histórias também.
As idas e vindas delas refletem em mim. São capazes de ter influência na minha história porque é nas relações que crio com essas pessoas que abro espaço para a transformação. Absorvo novas referências, sou exposta a novas situações. Cada momento em que me relaciono com alguém é uma oportunidade de construir quem quero ser, de entender quem sou. E perceber que não é algo imutável, mas que sou feita de uma substância maleável, elástica.
Mudar de endereço muda tudo porque se relacionar com pessoas diferentes muda tudo. Nem é preciso ir tão longe: basta esbarrar numa pessoa nova no meio da jornada para ver nosso caminho ter uma ligeira — mas talvez muito significativa — inclinação de rota para o futuro.
Mudança dá medo.
Criar novos relacionamentos é apavorante: cada pessoa é um universo inteiro. Não dá para saber como vai ser, quais vão ser os conflitos, onde vão dar os pontos de afinidade, que pessoa eu vou me tornar ali. A jornada se faz no caminhar.
Ainda tem espaço pra criar novos nós nessa teia? A massa de cimento da minha identidade continua fresca? O que acontece se eu provocar outra mudança nessa narrativa? Não sei. Sei que ando precisada de balançar um pouco as coisas.
Olho para o meu quintal simbólico e vejo os pontos de água parada. Sei que posso desvirar aquelas garrafas largadas. Sei que preciso me livrar de algumas tralhas (capaz de esconderem até escorpiões).
Só preciso de um movimento e o cenário não será mais o mesmo. Basta um.
Das cenas mais geniais e simbólicas do filme é quando a equipe de combate a endemias precisa mudar de escritório. Da sala improvisada dentro da escola municipal, o serviço passa a funcionar dentro de uma associação de moradores.
O processo de migração é um momento tão verdadeiro que chega a ser engraçado. Não tem caminhão pra levar os móveis, não tem gente contratada pra fazer isso, nada. Quem faz a mudança são os próprios personagens: a chefe leva a cadeira de rodinhas, Juliana leva caixas, Hélio e Jaque carregam um armário de metal.
Todo mundo a pé. Levando os móveis no braço. Atravessando várias ruas.
Além de toda brasilidade que cabe nessa cena (serviço público, mas as coisas feitas assim meio informais), gosto da mudança representada como esse esforço braçal, como esse caminho que é preciso percorrer com as próprias pernas, como esse transporte de bagagens de nossas vidas passadas para encaixarmos (talvez num contexto diferente) nesse novo lugar.
A água também aparece na história carregando muito significado: a água parada, que aparece inevitável nas cenas com quintais abandonados ou até na cena em que Juliana e Hélio conversam diante do lago da cidade (água poluída, paisagem degradada), parece indicar os pontos da vida que pedem por uma intervenção, onde as coisas ficaram talvez acomodadas por tempo demais (“ele é um dinossauro T-Rex, já está nesse trabalho há 15 anos!”).
Em contraste, a água corrente começa a aparecer na história, indicando que algo em Juliana está se transformando.
Primeiro, a chuva que ela pega indo ao trabalho. Um toró do lado de fora e a equipe precisa matar tempo no escritório, momento em que Juliana fica mais próxima de seus colegas, quando ouve a chefe contar histórias íntimas sobre sua vida amorosa (mostra até foto do peguete sem camisa).
Depois, a cena em que Juliana e os colegas vão passear numa cachoeira. Dessa vez, é ela quem conta uma história íntima da sua infância para a colega Jaque. Hélio toma banho nas águas rasas do rio. A cena parece indicar que ao movimentar as nossas águas, abrimos espaço para tornar mais profundas nossas relações.
Da água parada às correntezas: o percurso do filme é uma metáfora para os percursos que fazemos na vida, alternando entre um estado e outro, entre movimento e pausa.
Temporada fica pra mim como um filme muito sincero sobre as coisas e situações que, como o título indica, são temporárias.
Impermanentes como o próprio ato de movimentar-se, de reinventar-se, que tem o seu fim quando é tempo de se assentar.
Impermanentes como as pessoas que entram e saem de nossas vidas.
Elas são correnteza: passam por nossas vidas trazendo movimento, podem correr ao nosso lado por boa parte do caminho, mas cada uma tem seu próprio percurso.
Podemos no máximo acompanhá-las por um trecho da jornada.
Gostei muito dessa análise sobre Temporada como uma utopia urbana.
Leia também a resenha que escrevi para um outro filme nacional excelente, Que horas ela volta?
Assine e receba grátis minha newsletter com os textos e indicações que mando por email: