Esqueça os cursos com os nomes consagrados, as dicas de escritores que dizem saber o que estão fazendo, os manuais indispensáveis escritos por quem precisava muito pagar as contas. Esses dias tive aula com quem melhor entende de criação: uma criança.
Olivia tem 6 anos e veio nos visitar num final de semana sem nada especial programado; no entanto, assim que surgiram papéis e lápis de cor, a experiência se transformou num verdadeiro workshop de escrita e criatividade.
A iniciativa foi dela. Viu o tio Marcos desenhar um homem azul de cabelo vermelho e quis saber o nome dele, identificando o protagonista de uma história que começava a se formar. Não titubeou e criou um crânio (ucraniano) para ser o melhor amigo do protagonista. Deu forma, cor e até nome.
Não demorou para que Olivia organizasse sua equipe criativa. Ela se autointitulou “diretora” do livro, enquanto seu irmão mais velho seria o redator, anotando no celular toda a história que saía desse louco brainstorming. Ao tio dela e a mim coube o papel de ilustradores, tentando materializar em traços a vivacidade da história na mesma velocidade em que surgiam as ideias. Haja braço.
Olivia colocou a todos para pensarem juntos; acolhia as ideias, refletia sobre elas, tentava melhorá-las ou aceitava quando alguém dava uma sugestão mais interessante. Não se contentava em apenas dirigir o rumo da história; pegava ela mesma o lápis e rabiscava algumas cenas. Desenhou todo o mapa do universo que acabara de criar e o usava para explicar o que estava acontecendo onde e com quem.
As páginas de ilustração começaram a se acumular em uma pilha, enquanto os parágrafos de texto digitados pelo irmão Arthur ganhavam mais e mais volume. Spoiler: escrevemos um livro inteiro, história com início, meio e fim, numa tarde de sábado.
Quase uma pequena Kerouac.
Não demos tarefas. Não estabelecemos regras. Apenas ouvimos Olivia — e ela tinha muito a dizer. “Gente, tive uma ideia, tive uma ideia”, ela dizia empolgada. “E se…”, essas palavras mágicas que fazem nascer histórias fantásticas saíam de sua boca cinquenta vezes por minuto.
Paramos apenas para almoçar, mas a cabecinha dela não parou. Não via a hora de voltar para saber o que aconteceria a Roberto Bebeto e seu amigo Queima-Língua, ou o que o vilão Chama Chamego e seu assistente Chaminha, que moravam dentro de um vulcão, fariam para atrapalhar nosso herói.
Chegou a sobremesa: pudim. “E se os guardas que protegem o diamante do poder fossem pudins gigantes?”. Ela adorou tanto que não se conteve e contou para o garçom, que não entendeu nada, coitado, que ela estava muito animada porque o pudim ia aparecer no livro.
Resolvemos os conflitos narrativos, desenhamos as últimas cenas, Arthur escreveu o final, grampeamos tudo. Olivia ficou muito feliz com seu primeiro livro — mas já estava com a cabeça na sequência da história, que seria uma prequel sobre a origem do Chaminha, o assistente do vilão.
Ter o privilégio de escrever e criar com Olivia me ensinou uma importante lição. Tudo o que é preciso para contar uma história é querer, com muita força, contá-la.
A obsessão com a história. A pressa em vê-la pronta. Abraçar as ideias que surgem, por mais ridículas que pareçam. Não, não existe ridículo. Não existe medo. O que existe é o desejo de fazer em seu estado bruto.
Essa percepção me atingiu como um soco vindo de um pudim gigante. De repente entendi que o que realmente preciso é manter viva essa vontade violenta de escrever que há em mim.
Não preciso escrever como os clássicos, como os escritores em evidência, como os que ganham prêmios ou vendem muito; preciso escrever como uma criança. Implacável. Sem medo de acreditar nas próprias ideias doidas. Cheia de vontade de fazer. Eye of a tiger, eye of a tiger!
Onde vai parar essa vontade quando crescemos?
Os adultos se preocupam demais em motivos para não fazer. “Ah, eu tenho ideias DEMAIS, não consigo me focar em uma e acabo não escrevendo”. Olivia teria achado engraçado: desde quando excesso de ideias é um problema?
Medo de flopar, medo de errar. Importar-se mais com o resultado e o reconhecimento e os leitores e a grana do que com o processo. E o processo tem um quê de brincadeira; é preciso amá-lo, entregar-se a ele. As crianças sabem. As crianças inventaram o rolê.
Saber como escrever diálogos, a gramática impecável, a voz narrativa, estilo indireto livre, as regras e dicas, os gêneros, os personagens tridimensionais: importante, mas acessório. O conhecimento e a habilidade vêm aos poucos, com a prática. Mas o que fazer com tanto conhecimento formal se não houver o desejo, honesto e pulsante, de escrever?
Deveríamos ouvir as crianças, aprender com elas, reconectar-se com aquela que fomos. Não por acaso Picasso disse que precisou de uma vida inteira para desenhar como uma criança. Reencontrar nossas verdadeiras motivações é a jornada de nossas vidas.
Obrigada, Olivia. Espero que continue a escrever.
De volta ao motivo
Don L, “Aquela fé”
Não
De volta ao motivo do motivo
Mil voltas no mundo
Em buscas e buscas
Depois mais mil voltas em círculo
Um circo num cerco de insanidade
A fim de recuperar o que cê já tinha no início