Não consigo gostar da lógica que criou a necessidade de criar cada vez mais conteúdo com uma frequência cada vez maior.
Tenho visto artistas de que gosto pedindo desculpas por terem “sumido” (ficaram uma semana sem postar), ou se queixando de exaustão por não conseguirem seguir o ritmo de postagem diária que se espera de quem vive na/da internet.
Outro dia, foi a Fran Menezes. Numa tirinha super sensível sobre ansiedade, chamou minha atenção o quadro em que ela diz: “I have to post or people will forget me” 1 . O famigerado fear of missing out virando o fear of being forgotten 2. Já existe uma sigla para isso? Deveria.
O preocupante é que essa lógica está adoecendo pessoas. É preciso marcar presença, é preciso aumentar o alcance, é preciso produzir, é preciso apresentar novidades. Certo, mas a que custo?
Vale lembrar que isso acontece não porque a internet seja assim, mas porque foi o que ela se tornou. Uma máquina de moer gente e de encher linguiça. Tudo para nos manter o máximo de tempo possível dentro de determinados ambientes virtuais, onde não somos apenas usuários, mas o produto. É o nosso tempo que eles vendem para anunciantes que sustentam o modelo de negócios que os mantêm de pé.
Sim, Facebook, estou olhando para você. E para vocês, Instagram, Youtube. Twitter, é melhor nem começar a zoar os coleguinhas se não sobra para você também.
Foi por volta de 2013 que essa merda começou: com a massiva entrada de marcas e empresas no Facebook, a empresa de Zuckeberg começou a mudar as regras. Passaram a restringir consideravelmente o alcance das postagens, para poder cobrar de quem quisesse que a mensagem chegasse a uma porcentagem maior de seguidores (e nem estamos falando de furar a bolha, veja bem).
Ah, também foi nesse ano que acabou o Google Reader. Eu sei, não supero. Não tanto pela ferramenta em si (surgiram várias outras, como o Feedly, para acolher os órfãos dos feeds), mas porque essa morte marcou o sepultamento de uma cultura: a dos blogs. A essa altura, o Twitter e o Facebook já tinham matado diversos deles. Os blogueiros começaram a abandonar seus espaços próprios para marcar cada vez mais presença nessas plataformas.
O conteúdo começou a ficar concentrado em cada vez menos espaços.
Vi essa onda chegando e logo tratei de arrumar uma alternativa. Se esse blog pareceu morto por longos períodos de tempo, foi porque resolvi habitar com mais frequência o email das pessoas, um espaço (ainda) protegido da lógica restritiva dos algoritmos que determinam o que veremos ou não nas nossas telinhas.
Em janeiro deste ano, foi a vez do Youtube mudar as regras do jogo. A partir de fevereiro, canais que tivessem menos de 1000 inscritos e menos de 4000 horas de tempo de exibição não estariam mais qualificados para gerar receita com anúncios na plataforma.
“Um dos principais valores do YouTube é permitir que qualquer pessoa ganhe dinheiro com um canal de sucesso”, o Youtube teve a coragem de dizer, no mesmo comunicado em que marcava a criação de uma elite que teria direito a uma fatia do bolo; quem não fosse grande o suficiente, estava fora da festa. O Youtube está errado? Bem, o dono da bola tem o direito de dizer com quem quer jogar.
Não que a mudança tenha facilitado muito o jogo para aqueles que passavam nos novos critérios. Gente com uma quantidade enorme de inscritos passou a observar uma diminuição na receita. Ter inscritos não era o suficiente; deixe seu joinha, comente, clique no sininho para receber as notificações, compartilhe. Ter alcance passou a depender da boa vontade dos inscritos em realizar um elaborado ritual de apertar botõezinhos em determinada ordem.
Soa até como um esquema de pirâmide.
Além disso, quem produz conteúdo para o Youtube viu a necessidade de produzir ainda mais conteúdo. Um vídeo por semana já não era o suficiente para gerar a mesma quantidade de views. Algoritmos compondo o que cada espectador vê na timeline, lembra? Então toma três vídeos por semana. Um vídeo todo dia. Alimentar a máquina com o que ela quer: volume. Manter as pessoas mais tempo naquele ambiente, consumindo anúncios.
No Instagram, uma lógica parecida. Aquela que faz um perfil começar a desaparecer da timeline dos seguidores se não posta com frequência. Daí a angústia de artistas quando “somem” por uma semana.
Acho curioso, para não dizer doido. Os donos do tabuleiro mudam as regras, aumentam a dificuldade do jogo, e, em resposta, os jogadores fazem exatamente aquilo que eles querem que façam?
Aumentar a periodicidade de conteúdo novo tem um custo para seus criadores, que arcam com ele sozinhos, em benefício dessas empresas. Tem o custo em tempo, esforço, equipamento, pesquisa, criação, o custo em saúde física e emocional. Há também o custo da qualidade daquilo que se produz; não se aumenta a quantidade e frequência sem sacrificar um pouco da qualidade.
Como fazer pesquisas mais profundas, como desenvolver raciocínios mais elaborados ou inovar em formatos se a janela disponível para produzir esse conteúdo se estreita? Como não cair na superficialidade, nas fórmulas prontas e fáceis, no imediatismo dos temas?
Como espectadora, já tenho sentido o efeito dessas mudanças. No Youtube, vários canais passaram a aparecer com mais frequência, mas com temas cada vez mais banais. Pessoal anda tendo que tirar leite de pedra. Como se a prioridade agora fosse preencher um espaço.
Até quem tem algo a dizer acaba ficando sem assunto eventualmente.
Como criadora, entendo que a periodicidade é fundamental no processo de criação. Ajuda a desenvolver ritmo, a criar um estilo, a desenvolver uma linguagem, um trabalho consistente, uma relação com o público. A periodicidade é uma ferramenta; por isso mesmo, importante observar em benefício de quem a usamos. A periodicidade que dita nossa produção está sendo usada em nosso favor ou em favor de corporações que lucram com nosso conteúdo?
Sim, já fiz uma newsletter com periodicidade semanal e uma zine com periodicidade mensal, que nunca falharam no prazo. A diferença era estar criando conteúdo dentro da minha própria plataforma. Não havia a necessidade de publicar mais para gerar mais receita, se o modelo tanto da newsletter quanto da zine não dependia da exibição de anúncios. Inclusive, a ideia de uma zine impressa mensal foi justamente para tirar as pessoas, por dez minutos que seja, da frente de uma tela (o que acaba significando, lá na ponta, ver menos anúncios).
A partir do momento em que essa periodicidade deixou de fazer sentido para mim, mudei. A newsletter envio quando tenho algo a dizer. A zine publico quando quero. E meu blog, bem, ele sempre estará aqui.
Não que eu tenha me livrado por completo da plataforma de terceiros. Ainda estou no Twitter e no Instagram. Posso passar períodos fora, muitas vezes por preguiça e birra do que esses espaços se tornaram, mas eventualmente volto. Bate aquele fear of missing out, que é a isca no anzol que esses sites usam para nos manter sempre lá.
Já o fear of being forgotten continuará por um bom tempo servindo de combustível para manter produtores de conteúdo acorrentados a uma lógica de produção insustentável a longo prazo. Muitas vezes, significa subordinar uma produção artística (penso nos meus colegas artistas no Instagram, por exemplo), a um sistema industrial que opera como um fast food. Produzir mais e mais rápido. Conteúdo ficando descartável. Não há saúde mental que aguente.
Ou talvez errado seja quem não tenha entendido como vencer com as novas regras do jogo. Afinal, estamos em tempos em que quem não detém o poder ou se adequa ou desaparece.
E seguimos baseando nossos objetivos em numerozinhos numa tela (likes, views, acessos, seguidores, dinheiro). Imagina que louco seria o mundo se não fossem eles que determinassem quem tem valor ou não.
1 Traduzindo: “Preciso postar ou as pessoas vão me esquecer”
2 “Medo de deixar algo passar” e “medo de ser esquecido”, respectivamente.