Tenho algumas dívidas com Neil Gaiman. Uma delas é por ter me introduzido Tori Amos. A música dela foi companheira em alguns momentos de ruptura na minha vida, mas antes da música veio o texto. Estava lá, um texto sobre a Morte, assinado por ela, numa coletânea de contos baseados no universo de Sandman. Fui atrás. Conheci a música. Crush instantâneo.
Sorte disco não ter data de validade. O que mais gosto dela — ouço até hoje — é dos anos 90.
O texto (que foi escrito para ser prefácio de uma graphic novel do Gaiman que trazia Morte como protagonista) não estava lá por acaso. Tori e Neil são super amigos. Uma daquelas amizades antigas, profundas, bonitas de ver. Pessoas criativas que se respeitam e se inspiram mutuamente.
Aí que encontrei essa entrevista com os dois. É de 99, mas quem se importa?
Conta como se conheceram. Como Tori leu A casa de bonecas pela primeira vez e se apaixonou pela história. Ficou tão inspirada que escreveu Tear in your hand. Conta como Neil entrou em contato com ela, esperando que ela continuasse a fazer música — atendendo a pedidos, ela nunca parou. Lançou um álbum quase todo ano desde Little Earthquakes, em 1992. Conta como Neil foi vê-la tocar e achou Tori uma das pessoas mais legais que já conhecera — lembrava a ele uma de suas personagens, a Delírio.
Pode ser esquisito que um homem e uma mulher sejam tão próximos, mas ela conta que nunca houve confusão de que essa relação fosse dar em um romance. Não precisava. Tinham um affair criativo.
Neil enviava para Tori (via fax) trechos de seus escritos. Ele ligava e lia histórias antes de dormir, para que ela não tivesse pesadelos. Eles seguravam as pontas um do outro nos momentos difíceis.
A melhor parte, deixo que ela conte:
Ele veio me ver quando estava escrevendo Stardust, e ele leu para mim o primeiro capítulo na praia. O vento soprava e ele segurava minha mão. Era um tempo em que pouquíssimas palavras podiam trazer conforto.
Acho que quando você está numa encruzilhada há alguns amigos que somem, e tudo bem, porque não é o forte deles. Neil é diferente. Ele nunca se assustou sobre estar numa encruzilhada.
Fiquei tentando imaginar o privilégio tamanho de ter um Neil Gaiman ao seu lado, segurando sua mão, o vento batendo salgado no rosto, enquanto ele lê um trecho de sua nova história.
Não; não é Neil Gaiman em si que faz essa cena tão significativa: é ter alguém ao lado, com algumas palavras de conforto.
Nesses momentos difíceis é que se sabe quem realmente está do nosso lado. Os momentos de brilho atraem um monte de mariposas sedentas pela luz. Vira uma festa. Apague as luzes e elas vão embora para o ponto iluminado mais próximo.
Elas são bonitas, mas não dão nada em troca. Apenas dançam em torno da luz enquanto ela estiver acesa. Mas tudo bem, não se pode exigir muito dessas coitadas.
Quero apagar as luzes por um tempo, afastar as mariposas.
Talvez reste pouquíssima gente. Mas é cansativo ter que ser brilho o tempo inteiro e estar lá quando precisam e ter palavras para todos os momentos e receber quase nenhuma em troca quando preciso.
É mais do que uma questão de reciprocidade. É só ser possível entregar o meu melhor para quem está disposto a acolher as minhas sombras.
Uma vez, ela me contou que existe um pedaço dela em todo mundo. Embora Neil acredite que eu seja mais Delírio do que Tori, Morte me ensinou a aceitar isso, sabe, sem medo de ser feliz. E quando eu realmente aceito isso, sei que a Morte está em algum lugar dentro de mim. Ela é o tipo de garota que todas as meninas gostariam de ser. Acredito que por causa da sua aceitação de ser “o que é”. Ela sempre me lembra que há mudanças em “o que é”, mas a mudança não pode ocorrer antes de aceitarmos “o que é”.
Nas últimas horas, permiti me sentir derrotada, e, exatamente como ela disse, se você aceita sentir-se do jeito que realmente está, talvez não tenha mais medo desse sentimento.
Quando você está de joelhos, está mais perto do chão. AS coisas parecem mais próximas de alguma forma.
Tori Amos, texto da introdução da minissérie Morte: O Preço da Vida
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