Acabei de cochilar 2 horas durante a tarde e consigo despertar mais ou menos sem a sensação de que o mundo vai acabar por causa disso.
É um progresso: em outra época, eu acordaria “meu deus que ano é HOJE”, me sentindo mal por ter PERDIDO duas horas de trabalho. Quer dizer. Eu sequer me permitira desligar por uma hora sequer, num horário em que eu deveria estar produzindo.
Engraçado. Porque vim da soneca direto para o computador, com o texto já na ponta dos dedos. Cabeça resetada, foi um movimento natural. Agora sei o que fazer.
Corta para três dias atrás, quando eu estava do outro lado da história. Fui dormir com a consciência pesada, sensação péssima, não tinha terminado todas as tarefas que precisava fazer aquele dia. “Não fiz absolutamente NADA, que dia inútil”.
Como se tornou meu hábito, acordei no dia seguinte e fui registrar todas as coisas que eu havia feito no dia anterior. Ao final, percebi o quanto eu tinha feito. Tudo? Não. Mas bastante coisa. De onde vinha essa sensação de culpa, então?
Venho de um período sucessivo de trabalhar na capacidade máxima. Quando você se acostuma a sustentar determinado peso, você começa a sentir que pode aguentar um pouco mais. Um pouco mais. E mais. Até chegar no ponto em que a corda da sua resistência arrebenta.
Aos poucos, soltei a carga que vinha carregando desde muito longe.
Depois de tanto tempo cumprindo rotinas insanas, agora que me treinei para estabelecer metas mais humanamente possíveis, minha cabeça dá TILT (esse termo denuncia muito quem é cria dos anos 90, né?). Daí a sensação distorcida. Não é que eu não estava fazendo NADA: eu só estava fazendo MENOS. Mas era o suficiente.
Não quero mais trabalhar até o ponto de cair doente de exaustão, de ter crises, de sofrer tanto física e mentalmente, como nos últimos tempos. Precisei mudar de ritmo. Dizer mais “não”. Parar de superestimar minha capacidade de fazer as coisas. Ainda assim, é preciso uma adaptação. Fazer o cérebro se acostumar a uma nova realidade.
E a culpa, tão difícil fugir dela, certo?
A cultura cristã do sofrimento e da busca de expiação é mais forte do que nós. Ela nos atravessa contra a nossa vontade. Ela nos espreita quando comemos aquela comida trash, mas que dá aquele tesão. Lá está ela quando não estamos sendo produtivos. Ou escondida atrás de um vaso de plantas quando precisamos dizer aquele necessário “não”.
É ela quem traz o buquê da bad no nosso colo quando nos permitimos viver um tempo livre. É ela quem nos abraça e nos sufoca quando ousamos nos priorizar. Egoísta! Preguiçosa! Imprestável! Por que nos matamos para atender demandas alheias e, ao mesmo tempo, somos tão pouco generosos com nós mesmos?
Livrar-se dessa culpa é uma ginástica de repetição. Precisa ser praticada sempre. Estou no meio do processo de aprender, por exemplo, que tempo livre não é um tempo em que eu deveria preencher com mais trabalho, é tempo para MIM. Não é enrolação nem procrastinação. É tempo para eu descansar, viver, cuidar de mim. E eu nunca considerava que algo assim precisava existir dentro da minha agenda. É fácil deixar de perceber o óbvio: nosso trabalho só existe se, em primeiro lugar, estamos inteiros.
Faço uma máscara de argila, tiro uma soneca, vou olhar o pôr-do-sol. Medito.
Tempo para viver deveria estar na nossa agenda. Tempo para fazer nada. Tempo para sonhar. Tempo para inverter a circulação, deitando no chão com as pernas para cima. Se não somos capazes de fazer isso sem sentir culpa, que coloquemos então no nosso cronograma pessoal.
Vai lá, anota no seu bullet journal. Cria mais um item na sua to-do list. “Fazer algo por mim, amanhã, às 19h”. Levar a si mesmo para passear na vizinhança? Jogar video-game? Fazer um pão? Comer macarronada? Alongar? O que seu coração está pedindo? Do que seu corpo está precisando?
Pode ser um tempo de 20 minutos, 1 hora, 3 horas. O tempo que couber na sua agenda para aquele dia. Pode ser flexível, o importante é esse tempo estar lá.
Com um desafio: tá proibido sentir culpa. Sentiu culpa, perdeu. Vamos fazer disso um jogo; todo mundo gosta de um jogo. Quem sabe assim não paramos de nos lamentar “puxa, eu QUERIA fazer isso sem sofrer depois, mas não CONSIGO”, e passamos a realmente TENTAR?
Para criar um mundo utópico onde isso é o normal, e não há tanta ânsia por fazer mais, por consumir mais, por ser mais que o outro, um mundo em que responder e-mails não é mais importante que se alimentar bem, basta apenas ligar uma simples chavinha mental: é possível pegar mais leve e ainda assim fazer tudo o que precisamos fazer. Respeitando o nosso tempo, nossas limitações e nossos ciclos.
O segundo passo para criar esse mundo é tirar uma boa soneca.
Texto originalmente publicado em Uma Newsletter #21, em maio de 2018. Receba as próximas edições diretamente no seu email. É grátis!