Quando perguntam quais são as minhas referências literárias, esperam uma lista de autores ou livros como resposta; o tipo de pergunta que parece um teste para saberem se tenho mesmo boa procedência. Respondo por condicionamento, mas comecei a perceber que boa parte das minhas principais referências sequer vêm da literatura.
Racionais MC’s estão entre elas. Pela qualidade do som, mas sobretudo pela forma que criam músicas que contam tantas histórias. Admiro e fico muito inspirada por esse domínio de narrativa. Storytelling puro.
Nesse sentido, minha música favorita é Jesus Chorou, lançada no álbum Nada como um dia após o outro dia, de 2002. Depois de tanto tempo ouvindo essa música, um dia percebi porque ela me atraía tanto: ela reúne, em quase 8 minutos, os principais atributos que busco no que leio e no que escrevo. Boa literatura!
Jesus chorou traz lições valiosas para quem escreve, é só prestar atenção.
Para começar, um resumo: Mano Brown, o narrador e protagonista, está numa verdadeira bad, vivendo um momento de angústia em relação às expectativas dos outros e ao seu lugar no mundo.
Por telefone, um amigo conta de um cara que o difamou pelas costas, sugerindo que ele fosse um interesseiro, que canta sobre a favela mas só quer saber do dinheiro. Essa situação acaba sendo um gatilho para toda a reflexão, porque, a partir do momento em que Mano Brown se destaca na cena do rap, todo mundo parece ter uma opinião sobre ele e sua carreira, muitas vezes com visões distorcidas sobre fama e poder.
Mano Brown está cercado de inveja e de maus conselhos, mas tenta se agarrar aos seus princípios, ao seu propósito como artista. O choro vem como uma forma sincera de se expressar diante dessa enorme pressão e das eventuais trairagens, apesar de não ser o tipo de atitude que se espera de um cara durão como ele. Então ele lembra que homem chorar não deveria ser algo ruim: até Jesus chorou.
E o que Racionais pode ensinar sobre fazer boa literatura? Depois de ouvir a música, vamos a algumas dessas lições:
Início cativante
As primeiras páginas de um livro são fundamentais para o leitor decidir se mergulha ou não na história. Mano Brown consegue fazer isso muito bem, quando materializa o pensamento do ouvinte ao redor de algo concreto e bastante familiar: uma lágrima.
O que é, o que é
Clara e salgada
Cabe em um olho
E pesa uma tonelada
Tem sabor de mar
Pode ser discreta
Inquilina da dor
Morada predileta
Nesta introdução, a música mostra o que o resto da história esconde. A música não conta exatamente o momento em que ela escorre, mas é a motivação dessa lágrima que atravessa toda a história, uma situação após a outra. Descobrir por que aquela lágrima é apresentada logo no início é um apelo e tanto para conquistar o interesse do ouvinte/leitor.
Um bom início dá o tom do que o leitor vai encontrar no restante da história. O início do primeiro livro da série A Torre Negra, de Stephen King, é um bom exemplo: “O homem de preto fugia pelo deserto e o pistoleiro ia atrás”. O autor consegue resumir numa única frase a perseguição que vemos ao decorrer do livro.
E como não lembrar de Kafka, em A metamorfose, com aquele início icônico? “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” Contida na primeira frase, a premissa básica da história, entregue sem burocracia.
Começar de onde a história realmente começa. Parece algo óbvio, mas não são todos que conseguem fazer. Há autores que se perdem em preâmbulos, introduções, na necessidade de explicar o cenário, o passado dos personagens, antes de chegar ao que de fato interessa. Mano Brown, não: começa exatamente da lágrima que cai, o auge da história e o motivo de estar sendo contada. Os porquês ele desenvolve aos poucos, mas aí nossa atenção já está com ele.
Boa construção de personagens
Sou muito da escola de Stephen King quando a questão é colocar personagens no centro: prefiro as histórias baseadas em personagens, e não em tramas. Como ele mesmo escreveu:
“A história advinda do enredo está propensa a ser artificial. Gosto de colocar um grupo de personagens em algum tipo de situação desagradável e vê-los tentando se libertar.”
– Stephen King, no livro Sobre a Escrita.
Há quem não abra mão da trama: um esquema narrativo com etapas pré-estabelecidas, a necessidade de plot twists e de surpresinhas bem distribuídas ao longo da história, porque o leitor está ali para ser surpreendido, certo?
Mas a trama por si só se transforma numa sequência burocrática de ações se não há um personagem com vida no meio disso tudo. E é isso que orienta minhas preferências na escrita e na leitura: me interesso pelos personagens, pelo que fazem e pensam, nas dinâmicas que estabelecem entre si, pela forma que refletem pessoas que conheço ou sentimentos com os quais me identifico. Gostar de um livro é geralmente gostar da companhia daqueles personagens, querer prolongar a relação e até voltar ao livro mais de uma vez.
“Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos, organizados em enredo, e de personagens que vivem estes fatos. É uma impressão praticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente na vida que vivem, nos problemas em que se enreda, na linha do seu destino. (…) O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo”.
– Antonio Candido, no ensaio “A personagem do romance”, do livro A personagem de ficção.
Jesus chorou é 100% personagem. Uma exigência da própria narrativa, que se trata de um protagonista cercado de vozes que tentam estabelecer quem ele é e como deve agir – daí sua angústia.
Essas vozes são apresentadas ao decorrer da história, com funções bem diferentes: há o amigo com quem Brown fala por telefone, que faz o papel de motoboy de treta ao contar sobre o mano que o difamou; há o “patrício” que “falou uma pá” do Brown; o pastor e sua advertência sobre não seguir o homem violento e nenhum de seus caminhos; Dona Ana, sua mãe, o alertando sobre a inveja das pessoas ruins; a voz da sua consciência, o “lado direito”, o incentivando a seguir a vida e não se abalar; o amigo que aconselha a não jogar pérolas aos porcos; o “piolho”, representando o senso comum de se aproveitar da fama para comer mulher, ostentar riqueza e acabar com os inimigos.
Já consigo até imaginar a adaptação para o teatro.
Em vez de apresentar uma história linear, uma trama com início, meio e fim, Mano Brown costura suas digressões à medida em que vai apresentando esses personagens. E nem é preciso fazer longas descrições ou apresentações: bastam as próprias falas de cada um para entender quem são e quais são seus principais valores.
Construir um personagem não depende tanto de descrições sobre quem ele é, mas conseguir de fato incorporá-lo à narrativa, vesti-lo de contexto, deixar que o personagem mostre do que ele é feito. Conte menos, mostre mais, parafraseando Hemingway.
Quando o autor abre espaço para a voz do personagem, pode largar o volante sossegado: o personagem bem construído dá conta não só de contar a história, mas de descrever os outros personagens e o mundo onde está inserido.
Um exemplo disso na música é quando o amigo não só descreve como era o cara que falou mal do Brown, como ambienta toda a cena e se posiciona nela, usando sua própria voz, sua própria linguagem:
Vai vendo, parei pra fumar um de remédio
Com uns moleque lá e pá, trafica nos prédios
Um que chegou depois, pediu pra dar uns 2
Logo um patrício, ó, novão e os carai
Fumaça vai, fumaça vem
ele chapou o coco
Se abriu que nem uma flor, ficou louco
Tava eu mais dois truta e uma mina
Num Tempra prata show filmado, ouvindo Guina
No trecho do “piolho”, o personagem surge louvando a fama de Brown e se coloca na posição “o que eu faria no seu lugar”, onde acaba revelando sua própria visão de mundo e o que o poder significa de sua perspectiva:
Famoso pra carai, durão! Ih, truta!
Faz seu mundo, não, Jão! A vida é curta
Só modelo por aí dando boi
Põe elas pra chupar e manda andar depois
Rasgar as madrugadas só de mil e cem
Se sou eu, truta, tem pra ninguém!
Nos trechos narrados pelo protagonista, até mesmo o cenário perde a cor para absorver o seu estado psicológico. Ele está chateado, dormindo mal, abalado com a maldade das pessoas, pensando mil fitas. Da sua perspectiva naquele momento, o mundo é um lugar cinzento e hostil, e isso vaza para a sua narrativa:
Vermelho e azul, hotel
Pisca só no cinza escuro do céu
Chuva cai lá fora e aumenta o ritmo
Sozinho, eu sou agora o meu inimigo íntimo
As características de um personagem não precisam ser expressas literalmente, descritas de forma óbvia. Elas podem estar diluídas na narrativa, mostradas nas entrelinhas. Como autores, podemos confiar mais nos nossos personagens, deixar que conduzam a história e que a narrativa se mescle à sua perspectiva de uma forma que seja impossível separar um do outro. Como leitores, podemos buscar nas boas histórias essas pequenas pistas que, quando abertas tal qual um Kinder Ovo, nos revelam preciosos detalhes de uma mente que, apesar de existir apenas no campo da ficção, em muitos aspectos se parece demais com a gente.
Narrativa contemporânea
Jesus Chorou tem um estilo bem contemporâneo do ponto de vista literário. Primeiro, por eliminar o narrador onisciente que tudo controla, ao colocar a voz do personagem no centro (o que, na literatura, recebe o nome de estilo indireto livre). Depois, porque abre mão da estrutura tradicional de início, meio e fim, ao contar uma história não linear, como se estivesse dentro da cabeça do protagonista, no instante em que a lágrima cai.
Parece um papo meio Pernalonga de batom, mas é justamente borrando essas fronteiras entre o que é rap e o que é literatura que aprendi tanto ouvindo Racionais MC’s. Se parecer uma heresia (ou pelo menos uma confusão de termos e conceitos), é porque não tenho formação acadêmica; o que sei sobre literatura aprendi fazendo, lendo e me apropriando do que acho interessante aqui e ali.
Bem, a forma que a história de Jesus Chorou se apresenta me lembrou um fluxo de consciência. É uma técnica que busca simular o caótico processo de pensamento, de associação de ideias, e da manifestação do inconsciente de determinado personagem, em seu mais puro estado. Virginia Woolf é bem conhecida por usar essa técnica, e seu romance Mrs. Dalloway é um exemplo bem ilustrativo disso.
A ideia de fluxo de consciência que se usa na literatura foi apropriada da psicanálise, e o termo foi criado pelo psicólogo William James, que disse o seguinte:
“A consciência, então, não se afigura picada em pedaços. Palavras como ‘corrente’ ou ‘trem’ não a descrevem apropriadamente. (…) Não é nada articulada, ela flui. Um ‘rio’ ou um ‘fluxo’ é a metáfora pela qual ela é mais naturalmente descrita.”
Ou seja, a consciência flui, como água. E a música se torna ainda mais inteligente ao usar algo que se assemelha a um fluxo para falar de lágrimas.
Jesus Chorou é uma imersão na mente do protagonista: é ele quem se lembra das conversas, dos conselhos que recebeu, da chuva que parece estar observando enquanto pensa em tudo isso. Passa por sua mente um desfile com os heróis que são sua referência – Malcolm X, Tupac, Bob Marley, Martin Luther King – e, em paralelo, a história de Jesus sendo traído por um amigo próximo. Enquanto isso, um monólogo interno onde Mano Brown fala sobre sua dor, sua relação com dinheiro, suas noites insones, o sofrimento de ser incompreendido.
Tudo ao mesmo tempo, no segundo que uma lágrima leva para correr pelo seu rosto.
É arte demais, jovem.
Diálogos convincentes
Escrever diálogos é difícil pra caralho. Não basta um travessão no início, ou um verbo dicendi no final (aqueles verbos como “disse”, “falou”, “esbravejou”, “conjecturou”… aliás, tem horas que a galera pesa a mão nesses verbos e eu só fico me perguntando “por que, deus??”).
Bons diálogos passam por entender a voz do personagem, e isso, como já disse ali em cima, Mano Brown fez muito bem em Jesus Chorou. Aliás: escute qualquer diálogo dentro das músicas dos Racionais e você terá uma lição e tanto. Talvez porque eles consigam captar e traduzir o que é, de fato, uma conversa na vida real. Resultado: convence.
No meu entendimento, há uma característica muito importante na nossa comunicação falada e que nem sempre os escritores seguem: as pessoas quase nunca dizem exatamente aquilo que querem dizer. Dão voltas. Usam eufemismo. Tentam ocultar suas verdadeiras intenções – ou às vezes simplesmente nem entendem quais são elas. Nossas conversas estão cheias de ruídos, de mensagens nas entrelinhas, de desentendidos. Quem nunca foi mal interpretado, não é mesmo?
O diálogo entre Brown e seu amigo no telefone é um bom exemplo. A começar pelo fato que o amigo dá a maior volta antes de chegar na parte da história que realmente interessa. Vou transcrever em forma de diálogo:
– Alô?
– Aí! Dorme, hein, doidão! Mil fita acontecendo e cê aí?
– Que horas são?
– Meio dia e vinte, ó. A fita é o seguinte, ó, não é esqueirando não, ó. Fita de mil grau. Ontem eu tava ali de CB, no peão, com um truta firmezão, cê tem que conhecer. Se pam, cê liga ele, vai saber de repente, ele fazia até um rap num passado recente.
– Aham.
– Vai vendo a fita, cê não acredita.
Depois o diálogo segue ambientando toda a cena e o amigo de Brown conta o que ouviu:
– Ih, o bico se atacou, ó! Falou uma pá do cê.
– Tipo o quê?
– “Esse Brown aí é cheio de querer ser. Deixa ele moscar, vir cantar na quebrada, vamo ver se é isso tudo quando ver as quadrada. Periferia nada, só pensa nele mesmo! Montado no dinheiro e cês aí no veneno. E a cara dele, truta? Cada um no seu corre. Tudo pelas verde, uns matam, outros morrem. Eu mesmo, se eu catar a boa numa hora dessa vou me destacar pro outro lado depressa. Vou comprar uma house de boy, depois alugo. Vão me chamar de senhor, não por vulgo. Mas pra ele só a Zona Sul que é a pá, diz que ele tira nós, nossa cara é cobrar. O que ele quiser nós quer, vem que tem, porque eu não pago pau pra ninguém!” E eu, só registrei, né? Não era de lá. Os mano tudo só ouviu, ninguém falou um A.
Esse trecho inteiro é genial porque eles conseguem colocar um diálogo dentro de outro diálogo, fluindo com naturalidade. Um diálogo que revela muito da situação, mas também dos personagens.
O próprio diálogo conta uma história: o amigo que vem contar uma treta todo no clima “não é querendo criar intriga não, mas já criando…”, aparentemente com uma boa intenção, mas porra, deixou o Brown boladão a noite inteira pensando nisso. Será que imaginava que seu telefonema ia dar nisso? Ou será que era justamente isso que ele queria, levar a palavra da bad vibe (e bem sabemos que tem uns “amigos” que curtem mesmo é nos ver pra baixo)?
Ou seja, entretém e entrega várias possibilidades para o leitor especular, como a boa literatura faz.
Verdade
No meio literário, obras de “autoficção” (aquelas em parte baseadas na vida de seus autores) geralmente são menosprezadas, consideradas obras menores, especialmente quando escritas por mulheres. Mas o próprio rótulo de “autoficção” me parece estranha, se toda ficção, em algum nível, é autoficção; as histórias sempre partem de vivências, memórias ou do acervo de referências de cada autor.
Como escreveu Antonio Candido, “o grande arsenal do romancista é a memória, de onde extrai os elementos da invenção”.
A maioria das músicas dos Racionais são marcadas por essa característica de contar histórias reais, vividas por eles ou que representem a realidade de onde vêm. Claro que nunca dá para saber até que ponto é verdade e onde começa a ficção, mas é essa a beleza contida no ato de contar histórias.
No final das contas, não importa muito se aquilo é 100% real, se aquele telefonema realmente rolou ou se Brown chorou com esse caso. O que importa é a verdade que essa história conta, a de um homem dizendo “ei, todo mundo passa por isso, de ter um amigo filho da puta”, ou dizendo “ei, homem pode chorar, não precisa sentir apenas através da violência”. Isso cria identificação com o leitor, faz com que ele crie uma conexão emocional com aquela história. E isso é poderoso demais.
Mesmo uma história totalmente inventada que se passe em outro mundo pode conter muita verdade, porque afinal o coração de toda história é o coração humano. Quando há verdade no que você escreve, não importa em qual gênero literário ou musical, a sua história vive. A verdade é essa.
As lágrimas – de Jesus ou de Brown – não foram em vão: rolaram para nos ensinar a contar uma boa história. Depois de borrar a letra triste do poeta.
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