21 árvores em 7 cores, as do arco-íris. A ideia era arranjá-las em espiral, uma espiral perfeita, seguindo a proporção áurea. Não fazia parte da composição, no entanto, a presença de Cacau, uma simpática cadelinha bege, deitada no meio das esculturas como se tivesse, enfim, descoberto o lugar mais perfeito no universo para acomodar sua barriguinha no chão.
Era nessa obra (as árvores, não Cacau, é bom explicar) que Simone estava trabalhando na semana em que cheguei à sua casa, numa vila próxima à praia do Campeche, em Florianópolis.
Simone Estella Hess, também conhecida como Sim Hess, é artista plástica e as esculturas de madeira que arranjava em seu quintal fariam parte de uma exposição especial para celebrar seus 50 anos.
Estamos entrando aqui num território amplamente visual, advirto. Minha escrita vai tentar alcançar as cores e formas tão importantes nessa história, mas sua imaginação precisa fazer o resto do trabalho.
Não será difícil visualizar Simone, no entanto. Vê a mulher ao meu lado, olhando para as esculturas recém-dispostas no quintal? É ela.
Cabelos longos e bem lisos, praticamente brancos. Usa um vestido longo e no seu antebraço (reparei) há marcas de tinta que denunciam que estava, não fazia muito tempo, trabalhando em seu ateliê. Usa óculos com uma armação grossa, branca, redonda, mas levemente puxada nos cantos, lembrando olhos de gatinhos. Por trás dos óculos, um rosto empolgadíssimo.
Ela me contava sobre a exposição e o que estava pensando para aquela obra. As 21 árvores, esculpidas em compensado (ainda faltava terminar algumas), representavam a força da vida. Uma ao lado da outra, pareciam ser a mesma árvore em seu processo de crescimento.
Cada uma delas corresponderia a um ano de vida, somando vinte e um, o tempo que leva para a formação de uma pessoa estar completa; o que ela fez pensando principalmente na maioridade de sua filha Madê, no momento, com 8 anos. As cores do arco-íris também eram uma homenagem às pessoas LGBT.
“Mas não tá legal assim, não”, ela disse de repente. Ao ver as árvores juntas, dispostas numa espiral crescente, com as árvores menores no meio e as maiores do lado de fora, Sim pareceu mudar de ideia. “Vamos colocar elas mais espalhadas, como uma floresta” e, juntamente com a fofíssima filha de Sim e com Marcos, que estava comigo, ajudei Sim a mover as árvores pelo quintal, para testar algumas fotografias.
Boa parte do fazer artístico está ali, durante o processo. Arte não é algo que chega pronta, acabada, passa pelos dedos do artista e chega a uma tela ou papel já perfeita. Ao contrário do que muita gente pensa, não vem como mágica.
Naquele momento, me identifiquei muito com Sim. O que ela fazia ali é bem uns 70% da minha rotina de trabalho: muda, mexe, desfaz, refaz, experimenta, reescreve. Não tá legal assim. E se for assim? E no meio do processo ter uma ideia nova que vai levar o texto para uma direção tão inesperada que, se fosse um novo obstáculo surgindo no caminho, eu certamente bateria meu tornozelo lá.
A floresta deixou Sim mais satisfeita. Estava se aproximando do que ela queria. Mas ainda não estava pronto. Mais trabalho para os próximos dias.
Enquanto isso, ela me convidou para conhecer seu ateliê. Um cômodo cheio de suas pinturas, materiais, compensados de madeira encostados na parede, e uma mesa bem no meio, com uma das árvores esperando para ser esculpida. Ali conversamos.
Simone, nascida em Florianópolis, é formada em Psicologia (uma mera coincidência ser minha segunda entrevistada com essa formação, juro). Mas acabou seguindo para o caminho das artes, fazendo cursos de pintura e escultura.
– Há quanto tempo você pinta? – perguntei.
– Desde criança, como todo mundo. Aquilo já fazia parte da minha formação como artista, da mesma forma que você também já escrevia quando criança! Como separar, né? Por isso, minha exposição é para celebrar não só meu tempo de carreira, mas meus 50 anos de vida – ela respondeu, entre risos simpáticos.
Então me explicou que o tema presente em suas pinturas – as árvores, espirais, espermatozóides dançando em torno de óvulos, sempre em cores tão vibrantes quanto sua própria personalidade – é algo no qual ela vem trabalhando há 17 anos, e que surgiu graças ao acaso:
– Eu estava fazendo uma pesquisa com materiais e fiz uma exposição só com piche em cima da tela. E piche é assim: compra um bloco, quebra, põe numa panelinha, esquenta e vai jogando quente sobre a tela. Nessa, acho que bateu no meu dedo, algo assim, porque pingou um tanto na tela, e fui tentar puxar e acabou virando um rabo. Parecia um espermatozóide! Quando percebi, adorei.
Sim me mostrou esse quadro, um risco preto em forma de espermatozóide sobre uma tela branca, um feliz acidente que serviu de inspiração para suas obras seguintes. Ela conta que ficou obcecada com o tema, que na época envolvia sua ideia de fertilidade: começou a criar telas com espermatozóides e óvulos, e chegou a criar 54 obras com variações dessas formas.
– Depois que eu fiz uma exposição com essas obras, lá pelo ano 2000, eu resolvi viajar pelo mundo. Estava com passagem comprada para a Austrália.
Antes de contar o que viu por lá, Sim explicou primeiro a motivação por trás disso:
– Perdi meu pai quando eu tinha 5 anos. Foi muito difícil. Não só a morte em si, mas tudo o que veio junto. Então, quando viajei, fui atrás de rituais de passagem, de concepções de vida e morte, como outras culturas lidavam com isso. Fiquei um pouco com os aborígenes, fui conhecer um pouco dos maori.
Um dia, em Alice Springs, uma cidade no meio da Austrália, Sim viu um cara fazendo uma pintura aborígene no chão e perguntou se ela podia ajudar.
– Fiquei uma tarde inteira colocando pinguinhos nos lugares onde ele dizia para colocar. Mas aquilo foi uma experiência muito forte pra mim. Porque na arte aborígene cada pontinho tem um significado. Pode ser um dia que passou, ou uma caçada, uma história do dia, ou da vida. Aí caiu a ficha pra mim. Os espermatozóides das minhas pinturas também podiam carregar um significado muito maior do que a fertilidade em si. Era vida. Mas vida para falar da morte. Foi quando descobri que ali, nas minhas pinturas de espermatozóides, eu estava, na verdade, trabalhando minha relação com a morte.
– Como você passou dos espermatozóides para as árvores? – perguntei.
– Conheci um cara e o pai dele tinha acabado de morrer. Ele estava muito mal porque nunca tinha entrado em contato com a morte. Quando vi aquilo, entendi que aquele sentimento não era mais meu. Eu finalmente tinha resolvido minha questão com a morte. À noite fiquei pensando: e agora? Não tenho mais o que fazer. Sobre o que vai ser meu trabalho agora? Acordei com um pensamento: “sêmen e semente são a mesma palavra. Sêmen e semente são a mesma palavra”. Levanto de manhã e vou no meu lixo orgânico, onde vejo uma semente de abacate brotando. A partir da forma desse broto é que a história das árvores começou.
A conversa se estendeu para o dia seguinte, quando Sim nos levou para almoçar numa vila de pescadores ao sul da ilha.
Depois de saber o que motivava a arte de Sim, eu estava interessada em saber sobre a parte mais técnica: por que suas pinturas eram marcadas por cores contrastantes, sobreposições e figuras com formas tão precisas? Ela respondeu:
– Depois que tive filho, e também pelo meu próprio momento, a minha vida é mais presa, sabe? Então me prendo muito à linha, faço tudo chapado. Não faço pincelada com textura, a textura me incomoda horrores. As poucas coisas que faço com textura, me arrependo e vou lá trabalhar um monte até ficar tudo lisinho, perfeitinho. Como boa virginiana, quero tudo arrumadinho – disse ela, rindo.
O cuidado com os detalhes é uma das coisas que mais me impressionou no trabalho de Sim. Especialmente quando ela me contou que não mistura cores. Que usa as cores puras, do jeitinho que elas vêm. E eu fiquei boba com isso. Sério.
Porque tente visualizar: nos quadros de Sim, os espermatozóides e óvulos ou os galhos das árvores e as ondas ao fundo, misturam-se e sobrepõem-se, criando intersecções que parecem ser a mistura da cor de cima com a cor de baixo. Mas não: é apenas uma terceira cor criando essa ilusão.
Passei um tempo considerável hipnotizada na frente dos quadros de Sim (mas não conte para ela!) pensando sobre a trabalheira que não deu pintar cada intersecção dessas – e são muitas – de uma cor diferente, com um traço tão preciso, de forma a funcionar como a ilusão de transparência. Isso é dominar muito o conhecimento de cores. Sobre como ela consegue atingir esse efeito, ela explicou:
– Cor é referência. Não existe cor pura. Ela sempre vai depender do lugar onde está aplicada, da luz, do contexto. Como a gente, né? A gente também é contexto. Dependendo de onde a gente está, do nosso momento, dos nossos estímulos, também mudamos.
No ateliê, ela havia comentado sobre a importância de cuidar de cada detalhe do processo ela mesma. Com formas tão direitinhas, parecendo vetores, por que não desenhá-las no computador? Ou por que não mandar os projetos das árvores para uma marcenaria cortar as placas de madeira? Perguntas que já fizeram para ela antes, de pessoas que não entendiam por que se dar a tanto trabalho.
– Falam que sou boba por não usar o computador pra facilitar, mas o meu processo é esse. É algo que precisa sair de mim. Tenho que riscar e lixar cada peça com minhas próprias mãos. Porque o tesão é na hora de criar, ver de fora o que antes só existia aqui dentro. Não tem como eu abrir mão disso, porque esse é meu trabalho: eu resolvi reflorestar o mundo com arte.
Mas fazer arte é também estar exposta à incompreensão. Já ouvi de um professor que a literatura tem um componente de doença, porque mostra uma incompatibilidade do autor pelo que é estabelecido no nosso mundo. Escritores – e artistas, no geral – são pessoas profundamente desajustadas com os valores da sociedade (mas só vejo vantagens em NÃO se adequar a uma sociedade doente), o que faz com que, muitas vezes, as pessoas tenham dificuldade de entender o que criam e o que as motivam.
Sim falou sobre isso, ao comentar sobre as reações que seu trabalho recebe. Dentro da família, sua própria tendência a ser artista foi reprimida, mesmo que desde cedo ela já pintasse e fizesse teatro. Ter uma vida de artista não era exatamente o que a mãe imaginava para ela. Mas não teve jeito. Sintonizada na frequência da arte, no entanto, Sim passou a se ver como um peixe fora d’água em meio à sua família. “Ou melhor, como uma ovelha psicodélica!”, ela mesma definiu.
Sua arte também encontrou resistência de outras maneiras:
– Há muito preconceito com meu trabalho – ela contou, para a minha surpresa. – Agora é que estão criticando menos, me xingando menos. Tem gente que vê sexo explícito no meu trabalho. Tem gente que gosta das pinturas até descobrir o que é. “Ah, achei que era só algo abstrato”, já me disseram, meio sem graça. Dei uma tela de presente para uma amiga, mas o marido falou: “se for aqueles quadros de minhoquinha, não quero aqui não”. Eu devo ser muito retardada, mas não consigo entender essa associação que fazem com sexo explícito.
A conversa se encaminhou para o final naquele clima de preguiça gostosa pós-almoço, embalada pelo som das ondas que faziam os barcos dos pescadores balançarem na nossa linha do horizonte.
No horizonte também se desenhava o futuro, cheio de planos que faziam os olhos de Sim brilharem: “quero levar a Madê para viajar pelo mundo comigo”, ela revelou. Também contou sobre outro projeto para o futuro: um livro reunindo suas obras e sua maneira de pensar o mundo. “Mas não agora; ainda não é o momento”.
“Quer saber? Acho que vou fazer 50 árvores”, de repente, a mente de Sim estava de volta ao seu trabalho com as esculturas de árvores, ponderando sobre as possibilidades da sua obra. Foi quando percebi que, mais do que ter a chance de perguntar a ela sobre como era seu processo de criação, tive o privilégio de presenciar parte de seu processo.
Essa entrevista era também a história dessa obra sendo criada e transformada – mas tive que voltar para São Paulo, afinal, e não cheguei a ver o resultado final que foi mostrado na exposição.
Mas, pelo que pude ver nesse vídeo, a floresta de Sim estava lá, cheia de vida: a vida que brota, a vida cheia de cores, e a vida por trás da história de uma artista que tanto me inspirou nos poucos dias que pude conhecê-la.
Com Sim Hess, aprendi que é possível ser jovem ao envelhecer. Aprendi que a arte que a gente produz reflete a nossa história. Aprendi que somos como as cores. Aprendi, sobretudo, que o artista precisa estar aberto ao acaso: tanto para ver que de um acidente com o piche pode surgir um tema rico a ser explorado na arte, quanto para ver que um broto de abacate pode carregar a renovação desse tema; mas também para ver que, mesmo em uma despretensiosa viagem para fugir um pouco de São Paulo, há histórias esperando para ser contadas.
Veja mais do trabalho de Sim Hess na página da artista.
Entrevista originalmente publicada na newsletter Bobagens Imperdíveis, em abril de 2016. Fotos: Marcos Felipe.
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