A dificuldade de resumir alguns livros está nas possibilidades de versões que eles oferecem; o próprio ato de contar o resumo de uma história já é criar uma versão sobre ela. Porque uma história pode carregar mais do que ela mesma – o que vai depender não só do trabalho do autor, mas muitas vezes da disposição do leitor.
Por exemplo, uma história pode ser sobre um jovem hacker que desenvolve um programa capaz de identificar uma pessoa pelo padrão de palavras que ela utiliza num computador. Que é também a história de um poderoso livro escrito por um povo sobrenatural do deserto que começa a chamar a atenção no mundo dos humanos. É sobre a luta pela liberdade de expressão no mundo árabe. Mas também pode ser sobre um jovem descobrindo um mundo paralelo ao dele, povoado de djins. É, ao mesmo tempo, sobre o conflito religião e ciência, fé e ceticismo.
Qualquer dos caminhos que se escolha conduzem a Alif, o Invisível, livro escrito pela americana G. Willow Wilson, que traz uma história ambientada no mundo islâmico em um momento em que o mundo ocidental volta mais sua atenção – e preconceitos – em direção aos muçulmanos e sua cultura.
O livro, escrito durante a Primavera Árabe e publicado lá fora em 2012, é carregado de atualidade. Além de colocar em foco a cultura islâmica, põe a internet e a tecnologia da informação no protagonismo da história, na figura do jovem hacker Alif.
De todas as histórias que a autora costura em seu livro – e parecem tantas que fica a impressão de que elas não chegam a se aprofundar muito – a que mais me interessou é a que atravessa o livro, paira acima dele e sobrevive a ele, mesmo depois que a história encontra seu fim.
E é aí onde esse texto precisa ir um pouco além de Alif e se torna, também, uma reflexão sobre construir literatura.
Um livro protagonizado por um hacker certamente traz a expectativa de que o tema central seja a tecnologia. Internet. Computadores. Programação. Mas, tentando chegar a um alicerce central no meio de tantos personagens e mais acontecimentos que em um filme de ação hollywoodiano, percebi que o motor da história reside em algo muito mais antigo: livros.
A história de Alif, o invisível gira em torno de dois livros: o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, e o Alf Yeom, ou “Os Mil e Um Dias”, um livro que traz contos criados pelos djins, seres sobrenaturais da mitologia árabe pré-islâmica.
Acho interessante apontar como esses dois livros estão representados em referências muito sutis do personagem: Alif, o apelido escolhido pelo jovem para representar sua identidade na internet, é o nome da primeira letra da sura Al Baqara no Alcorão: “dei a mim mesmo o nome da primeira linha do maior código já escrito. É um bom nome para um programador”.
O Alf Yeom é um tipo de As Mil e Uma Noites, com várias histórias entrelaçadas numa só, contendo todo o conhecimento acumulado pelos djins. Djin, que embora no português seja traduzido como “gênio”, em árabe (الجن) significa “aquele que não pode ser visto”, o que remete também à “invisibilidade” do anonimato que Alif usa para transitar na internet e ajudar todo tipo de oposição em nome da liberdade de expressão – de feministas a pornógrafos, de anarquistas a fundamentalistas religiosos; ele não se importa muito, só quer desafiar o poder vigente.
Se o mundo dos djins se revela como algo oculto e cheio de criaturas esquisitas, não chega a ser muito diferente do próprio mundo digital que Alif habita – toda sua surpresa e estranhamento ao descobrir esse “outro” mundo parecem um pouco fora de lugar, se tanto ele quanto os djins são, cada um ao seu jeito, invisíveis.
Mas não é Alif que interessa, e sim o livro que acaba caindo em suas mãos. O Alf Yeom é a história de uma ama contando inúmeras fábulas para uma princesa, na tentativa de convencê-la de que nem todos os homens são ruins – (adivinha) para que ela se aceite se casar. As histórias faziam parte da tradição oral dos djins, mas um deles teria contado Os Mil e Um Dias para um humano, que o transcreveu em forma de livro, interessado no poder que poderia ser extraído dele.
Desde o início da história, G. Willow Wilson aponta para a importância das metáforas, como quando Reza, o homem que transcreve o Alf Yeom pela primeira vez, diz ao djin:
“Só Adão recebeu o verdadeiro intelecto e apenas os banu adam [humanos] têm o poder de chamar as coisas por seus verdadeiros nomes. O que você chama de rei pássaro, a corça e o veado são apenas símbolos para disfarçar uma mensagem oculta. Oculto em suas histórias está o poder secreto do invisível.”
Mais adiante, vemos essa ideia novamente sendo reforçada: “As histórias são palavras, Alif, e as palavras às vezes representam coisas muito maiores”.
Ou quando Alif diz “Então, conforme o que está dizendo, as histórias não são só histórias. Elas na realidade são conhecimento secreto disfarçado de histórias”, e o djin Vikram responde: “Pode-se dizer isso de todas as histórias, irmão mais novo.”
De fato, narrativas são feitas de um material fluido e de múltiplas camadas de significado: nossa própria linguagem. Uma coisa pode significar uma coisa, mas também pode significar outra. Duas pessoas podem extrair interpretações drasticamente diferentes de uma mesma história, não porque uma delas possa ter entendido “errado”, mas porque há espaço para diferentes mensagens.
Essa propriedade das palavras de carregarem múltiplos sentidos é uma forma de tentar alcançar a variedade de possibilidades do nosso próprio mundo. Porque é através da nossa percepção que vivenciamos a realidade – e a realidade acaba sendo a possibilidade de uma infinidade de perspectivas simultâneas.
G. Willow Wilson exemplifica esse conceito com o próprio Alcorão, ao lembrar, durante a história, que cada palavra do livro sagrado possui sete mil camadas de significado, e que cada uma “existe igualmente em todos os tempos sem cair numa contradição cosmológica”.
Por exemplo, a palavra ذرة na versão em inglês do Alcorão é traduzida como “átomo”, embora átomos fossem desconhecidos na época em que o livro sagrado foi escrito. Mas não é um erro nem uma contradição; o significado contido na palavra é “a menor partícula indivisível”, logo pode significar “grão de areia”, “grão de poeira”, “célula”, “molécula”, “átomo”, até “hádron” ou “quark”. O significado se adapta ao tempo em que é lido, sem perder o real sentido. “O conhecimento que o homem tem do universo pode aumentar, mas ذرة não muda”.
É a partir disso que Alif entende o potencial das metáforas contidas no Alf Yeom: com base nelas, seria possível construir um computador quântico – e aí o interessante não é questionar se com base num livro milenar escrito por demônios é cientificamente possível ensinar um computador a pensar por metáforas (o que parece bem absurdo), mas sim encarar isso como uma analogia entre programação e escrita; uma forma de reforçar a importância da linguagem e refletir sobre suas possibilidades.
“Teoricamente, um computador quântico faria funções de dados usando íons, que são difíceis de pegar, controlar e manipular. Mas é possível chegar a quase isso se conseguirmos fazer um computador normal, baseado em silício, pensar em metáforas. (…) Metáforas: conhecimento existente em vários estados simultaneamente e sem contradição. Em vez de trabalhar com séries lineares de uns e zeros, o computador pode trabalhar com pacotes que são um e zero e cada ponto entre os dois, tudo ao mesmo tempo.”
Aqui há um vídeo bem interessante e explicativo sobre computação quântica (juro que não é tão assustador quanto o nome dá a entender):
Mas o que isso tem a ver com literatura?
Quando G. Willow Wilson apresenta essa associação aparentemente doida entre metáforas e programação, faz a história apontar para si mesma e se revelar como um código que pode ser interpretado de diversas formas. Mas não é como se fosse uma qualidade exclusiva do livro; como lembra o personagem Vikram, todas as histórias são dotadas dessa multiplicidade de camadas e perspectivas. Essa é uma propriedade que vai além de Alif, o invisível; ela se estende por toda a literatura.
Literatura pode ser vista como quântica; assim como os qubits (os bits quânticos), cada palavra ou cada elemento de uma história pode estar em qualquer proporção de um estado ao mesmo tempo. É na leitura – na interpretação de uma história – que essas palavras ganham um valor, ou múltiplos valores. Abrem-se para as possibilidades. Com isso, tornam-se maiores que uma sequência de palavras dispostas em páginas. Abrem-se inclusive para a possibilidade de chegar a um significado não imaginado pelo autor.
Isso nos lembra do papel ativo que o leitor exerce na construção da literatura. Por mais que o autor prepare uma história cheia de camadas, a história vai ter a profundidade que o leitor der para ela.
Do que adianta uma história com uma floresta de significados e metáforas para ser explorada, se o leitor prefere passar pelo caminho mais seguro e superficial? Lemos as palavras por cima ou tentamos extrair algum significado delas? Estamos ativamente construindo significados para as histórias que lemos ou só esperando passivamente que o livro nos dê as respostas e a forma “correta” de interpretar a história? Somos capazes de processar metáforas de propriedades quânticas ou apenas informações binárias?
O fazer literatura – e faz quem escreve, mas também quem lê – por si só já é criar possibilidades que não existiriam em nossa realidade ordinária. Como diz este trecho de El escritor y sus fantasmas, de Ernesto Sabato:
“Nesta vida única e limitada que temos, em cada instante nos vemos obrigados a eleger um só caminho entre os infinitos que se apresentam diante de nós. Eleger essa possibilidade é abandonar as outras. (…) Na ficção ensaiamos outros caminhos, lançando ao mundo esses personagens que parecem ser de carne e osso, mas que pertencem apenas ao universo dos fantasmas. Seres que realizam em nosso lugar, e de algum modo em nós mesmos, destinos que nossa vida única nos negou”.
A ficção nos permite conhecer o mundo invisível desses fantasmas, que são como djins se ocultando dos humanos em Alif; assim como na história, é preciso atravessar um muro para chegar a esse mundo – mas aqui, na nossa realidade, essa travessia é feita no momento em que abrimos um livro e, acima de tudo, a nossa própria mente para os inúmeros significados que ele pode carregar.
Sobre a autora
A primeira vez que ouvi sobre o trabalho de Gwendolyn Willow Wilson foi quando a Marvel anunciou sua nova Ms. Marvel: com roteiro da autora, a heroína foi reformulada como uma adolescente muçulmana, chamada Kamala Khan.
G. Willow Wilson também foi responsável pelo roteiro de uma nova série em quadrinhos reunindo várias heroínas da Marvel: A-Force, a primeira formação totalmente feminina dos Vingadores.
Também é autora das graphic novels Cairo (Vertigo, 2007), Air (Vertigo, 2008) e Vixen (DC, 2008), as três indicadas a prêmios importantes nos quadrinhos. Como escritora, seu primeiro livro A leitora do Alcorão foi premiado pela Seattle Times e conta um pouco da sua história de conversão ao Islã.
Americana e convertida, G. Willow Wilson é casada com um egípcio e mora no Cairo. Ela terminou de escrever Alif, o invisível enquanto explodia a Primavera Árabe e perto do nascimento de sua primeira filha Maryam – o que talvez explique porque ela goste de colocar tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo na história.
Sobre o Islã
Alif, o invisível, apesar de trazer referências à cultura árabe e muçulmana, não é um livro sobre a religião islâmica. Mas por ser uma história com personagens muçulmanos e ambientada no Golfo Pérsico, o livro traz a interessante possibilidade de desfazermos vários preconceitos que o mundo ocidental propaga sobre o povo muçulmano, que representa nada menos que 1/4 da população mundial. É gente demais para colocar sob o mesmo rótulo e achar que são todos iguais – ou pior, todos terroristas.
O vídeo abaixo traz interessantes reflexões e nos ajuda a quebrar alguns estereótipos preconceituosos:
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Fotografia da capa: SamahR / via Flickr Creative Commons