CONTÉM SPOILERS.
Eu não vou conseguir escrever sobre isso, pensei, com o rosto derretendo em lágrimas, assim que a sessão terminou. Talvez eu nem devesse, se o filme já fala tanto por si. Mas não adiantou sair da sala de cinema, voltar pra casa, dormir e acordar: a história continuava ecoando em mim.
O filme em questão que me fez desidratar em lágrimas e também rir um bocado foi “Que Horas Ela Volta?”, dirigido por Anna Muylaert e protagonizado por Regina Casé. O filme levou prêmios no Festival de Berlim e de Sundance, onde também foram premiadas pela maravilhosa atuação as atrizes Regina Casé e Camila Márdila.
Além disso, “Que Horas Ela Volta?” foi escolhido pelo Ministério da Cultura para concorrer, pelo Brasil, a um lugar entre os indicados a melhor filme estrangeiro no Oscar de 2016. A última vez que indicaram um filme brasileiro dirigido por uma mulher (Suzana Amaral, com A Hora da Estrela) foi no ano em que nasci, ou seja, há muito MUITO tempo.
Antes de assistir ao filme, acompanhei a visibilidade que os prêmios trouxeram, não só ao filme, mas às questões levantadas pela história e pela diretora. Nessa entrevista, Anna falou sobre as dificuldades de ter o trabalho reconhecido quando se é uma diretora mulher:
“Se um canal a cabo vai fazer uma nova série, dificilmente vai escolher uma mulher para fazer direção geral. Quanto maior for o orçamento, mais difícil será escolherem uma mulher. (…) Estou no mercado há muito tempo, já provei minha competência e seriedade em diversos trabalhos tanto no cinema, quanto na televisão. Este ano ganhei prêmios importantes fora do país, no entanto nenhuma televisão me fez alguma oferta de trabalho.”
A diretora Anna Muylaert
Quando se fala da importância da representatividade da mulher na mídia, no cinema, na TV, na literatura, vai muito além de vermos mais protagonistas nas histórias, sempre centradas em homens, ou menos personagens femininas reforçando estereótipos negativos; essa representatividade precisa estar presente nos bastidores, com mais mulheres produzindo, dirigindo, escrevendo, editando.
Em termos de representatividade, “Que Horas Ela Volta?” é um destaque importante. Além de ser dirigido por uma mulher, o filme passa no Teste Bechdel com louvor: não só possui duas personagens que conversam entre si sobre coisas que não têm a ver com um homem, como essas duas são as protagonistas. Mais do que isso, é sobre relação de mãe e filha, algo que nunca foi muito comum de se ver no cinema mainstream – motivo pelo qual a animação Valente, na época, chamou tanto a minha atenção.
Vamos lá: a história é sobre Val, interpretada por Regina Casé, que sai da sua terra, Pernambuco, para trabalhar em São Paulo como babá e empregada doméstica de uma família rica no Morumbi. Ela cria Fabinho, o filho dos patrões, enquanto precisa deixar sua própria filha, Jéssica, aos cuidados de outra pessoa na cidade que deixou para trás.
Dez anos depois, Jéssica resolve ir para São Paulo tentar vestibular na USP e fica um tempo com a mãe, que mora no serviço. O que acontece é que sua chegada vira aquele mundo de cabeça pra baixo; afinal, boas histórias são feitas de conflitos.
(a partir daqui, você irá tropeçar em vários spoilers, continue por sua conta e risco)
Jéssica e Val
Jéssica é o elemento de desequilíbrio naquela ordem tão naturalmente estabelecida que separa patrões e empregados, ricos e pobres. Ela chega sem nenhuma noção de que, por ser filha de empregada, é esperado que se submeta, se encolha e se mostre sempre humilde. É preciso negar o que lhe é oferecido, pedir desculpas, saber o seu lugar. Para o desespero de Val, que tenta em vão ensinar a ela como se comportar ali, Jéssica aceita tudo o que lhe oferecem, fala de igual para igual, não se intimida pelas barreiras invisíveis que delimitam onde ela pode ou não transitar ali.
O comportamento de Jéssica incomodou os outros não porque fosse abusada ou mal educada, mas simplesmente porque exigir ser tratada como uma pessoa, se você faz parte de determinado grupo, é algo simplesmente inaceitável, estranho, praticamente alienígena. O que me chamou a atenção na personagem de cara, além de ser a cara da Jout Jout (gente, sério, apesar de saber que era a Camila Márdila, eu só conseguia pensar “nossa, a Jout Jout tá ótima nesse papel”), é como ela é segura de si, confiante. E isso vindo de determinadas pessoas pode ser considerado praticamente uma agressão; é por isso que mulheres que não abaixam a cabeça são vistas como histéricas, loucas, e que o estereótipo de barraqueira e agressiva recaia sobre mulheres negras que sejam simplesmente assertivas. Para quem sempre foi impedida de falar, qualquer coisa mais alta que um sussurro sempre vai parecer um escândalo.
Quando Jéssica é apresentada à família rica, o primeiro contato é envernizado por uma grossa pincelada de condescendência. Ela conta que vai prestar vestibular para Arquitetura, o que faz Fabinho ficar surpreso, quase ofendido: “mas é muito concorrida!”, como quem diz: “tem certeza disso?”. Quando Jéssica é perguntada se sua escola era boa, ela diz “na verdade, o ensino não era bom não”, e antes mesmo que ela terminasse de falar, Dona Bárbara, a patroa, contrai o rosto em uma expressão patética de pena e afaga a garota como quem afaga um cachorro: “own, coitadinha”. Mas a condescendência bate em Jéssica e volta, porque ela se recusa a fazer o papel de “coitadinha”, ao parecer bastante confiante do seu conhecimento e da sua formação.
Minha identificação com Jéssica já começou a bater forte daí: vir de uma família pobre e ser inteligente é visto como algo “bonitinho”, como se fosse ingenuidade nossa de achar que somos inteligentes mesmo, afinal, não estudamos nos melhores colégios, não tivemos os melhores professores, não tivemos condições de viajar para fora, de conhecer outras culturas, de ter as melhores referências artísticas. Não, não somos inteligentes, somos no máximo “esforçadas”. É verdade que vindo de camadas sociais mais baixas e de grupos minoritários é preciso se esforçar enormemente para tentar superar a abismal lacuna deixada pela desigualdade racial, de gênero e de classe, mas isso não quer dizer que não possamos ser genuinamente inteligentes, curiosas, criativas, cultas. Enquanto isso, Fabinho é visto como um garoto inteligente simplesmente porque sim, embora ele não seja visto estudando, ou tendo opiniões tão maduras quanto Jéssica falando das suas referências e do seu entendimento sobre arquitetura e arte.
Jéssica subverte as expectativas das pessoas privilegiadas com a sua própria espontaneidade, como quando ela conhece o quarto de hóspedes (ou melhor, suíte) e diz, rindo, “ah, então é aqui que eu vou ficar?”, mesmo sabendo que era esperado que ela ficasse no quartinho de empregada, com a mãe. O quarto de empregada, geralmente um cubículo mal iluminado e pouco ventilado presente na estrutura de muitas casas e apartamentos brasileiros, é um símbolo das senzalas de outro tempo, da separação entre sinhôs e escravos, de patrões e trabalhadores. É deitada num colchão dentro desse quartinho que Jéssica diz para a mãe que não sabe como ela aguenta ser tratada como uma cidadã de segunda classe, num dos vários momentos cheios de significado do filme. Também não deixa de ser emblemático que isso seja dito naquele cômodo justamente por uma aspirante a arquiteta, a quem cabe o trabalho de projetar, de construir algo novo. Quem sabe representando a ideia de mudar, na planta, a estrutura da sociedade?
Val e Bárbara
O filme é construído nas bases dessas sutilezas. O trabalho da atriz Karine Teles, que interpreta Bárbara, a dona da casa, também merece ser reconhecido. É impressionante como a personagem consegue ser tão detestável sem nunca descer do salto. Porque é justamente na sua excessiva polidez, no seu refinamento, no seu jeito sempre educado de falar, que se manifesta a sua intenção clara de manter a “criadagem” em seu devido lugar de submissão. Como quando ela fala mal de Jéssica para o marido na frente de Val, mas fala em inglês, porque ela é phyna e porque não se espera que aquela “ignorante” fosse entender. Ou quando ela conhece Jéssica e suas ambições profissionais, e solta, em um tom de surpresa ressentida: “nossa, esse país está mudando mesmo, hein”, representando a mesma repulsa de uma antiga classe média e classe alta com a presença de pessoas menos privilegiadas em espaços como aeroportos, universidades, shoppings e cinemas, onde a classe mais favorecida estava acostumada a ver apenas a si mesma.
Quando Bárbara diz para Val que ela é “quase da família”, o filme não mostrava apenas aquelas duas personagens, mas um país inteiro. Sob o filtro da ficção, o filme desconstrói o “quase da família” que é dito com tanta inocência e naturalidade por patroas que podem até se achar generosas debaixo de um pretexto que, na verdade, sempre serviu para privar as domésticas de seus direitos. Mas quando se fala “quase da família”, o que pesa mais é sempre o “quase”. Quase, porque não pode comer à mesa com os patrões. Quase, porque esse sorvete é do Fabinho, não é pra você. Quase, porque na minha festa de aniversário você vai estar servindo os convidados. Quase, porque não pode entrar na piscina. Quase, porque só vai aparecer nas fotos de família acidentalmente, ao fundo, vestindo um uniforme branco. Quase, porque seu lugar é da porta da cozinha pra lá.
Não é como se Val tivesse deixado sua família no Nordeste para ser acolhida por outra ali. Val habita não só um quarto de empregadas, mas um vácuo afetivo, aquele que existe entre a sua família, que teve que deixar para trás para trabalhar ali, e entre a família que, apesar de ser aquela com a qual divide o teto, nunca será a sua.
O fato de caber a uma mulher (no caso, Bárbara) esse papel de “vilã”, revela não só as nuances de privilégio que uma mulher branca e de classe média possui em relação a mulheres negras e pobres, mas também um dedinho do patriarcado nessas relações sociais: cabe a mulher o cuidado com a casa, mesmo que esse cuidado vá ser o de administrar os empregados. Se Val tem alguma queixa ou pedido a fazer, é à Bárbara que ela recorre, porque mesmo sendo uma mulher rica que trabalha fora, ela ainda é a responsável pela casa. O marido ali é alguém a ser cuidado, mesmo que o cuidado da esposa seja terceirizado: é Val que leva para ele refrigerante, que serve seu almoço, que vai acordá-lo, que vai ver se ele tomou os remédios.
Mas não é por ser um cara extremamente passivo que Carlos, o patrão, não se aproveita dessa relação de opressão. Como em muitas histórias reais que conhecemos, Carlos se sente atraído pela filha da empregada e tenta ficar com Jéssica, munido da sensação de “merecimento” que um homem, especialmente em posição de poder, acha que tem em relação a uma mulher, especialmente mais pobre e mais jovem. Mas achei muito interessante a escolha do filme em mostrar o patrão abusador como ridículo e vulnerável em vez de ameaçador. Toda vez que ele se aproximava de Jéssica eu morria de agonia e começava a temer por ela, mas o filme subverteu minha expectativa quando resolveu ridicularizar o personagem na cena de vergonha alheia mais insuportável que eu já vi dentro de um cinema.
Carlos é um homem velho que se comporta como um adolescente acostumado a ter tudo na mãozinha (o que faz todo o sentido quando a gente descobre que sua família sempre foi rica e que ele é o herdeiro daquilo tudo). Ele não é muito diferente de Fabinho, que apesar de ser jovem, é um marmanjão que já passou da idade de ir pedir colo para a empregada e dormir com ela, como se ainda fosse um bebê. Nos dois personagens, em momentos distintos e por motivos diferentes, o filme expõe a vulnerabilidade (praticamente a infantilização) de homens de diferentes gerações que foram criados acreditando que “merecem” o mundo; seja na forma do afeto de uma mulher ou na forma de um vestibular. Quando eles se confrontam com a realidade, na forma de rejeição ou fracasso, o mundo deles desaba. Mas, como acontece com Fabinho ao descobrir que ele é reprovado no vestibular, quando alguém tem poder e recursos, não há como sair perdedor. Afinal, seus pais têm dinheiro para mandá-lo para fazer um intercâmbio na Austrália, transformando o que seria uma derrota numa conquista, num motivo de comemoração. Mesmo quando ele “fracassa”, ele ganha.
Fabinho recebendo um gostoso cafuné da vida
A viagem de Fabinho também é bastante significativa em um filme que tem a imigração como um ponto central na trama. Para Val e Jéssica, sair do lugar de origem veio como uma imposição das circunstâncias, um passo necessário para conseguir mudar de vida e dar uma condição melhor para a família. Para Fabinho, sair de casa veio como um presente, como um prêmio de consolação, como a oportunidade não só de sair do lugar de origem, mas de sair do Brasil, entrar em contato com outra cultura, acumular experiências sem a preocupação de ter deixado para trás alguém que precise sustentar. A mesma situação, significados drasticamente diferentes.
Mais do que uma história que expõe conflitos entre classes sociais, “Que Horas Ela Volta?” é também sobre o conflito entre gerações, representado pelo choque entre mãe e filha. Jéssica é a representação de um recorte diferente de millennials, uma geração considerada mimada, desinteressada e hedonista (como Fabinho), mas que na figura da personagem demonstra uma faceta diferente, a de jovens que questionam e já não aceitam mais os velhos arranjos sociais. Sua própria jornada pessoal é no sentido de rejeitar o status quo, ao buscar uma formação acadêmica que lhe amplie os horizontes e possibilite oportunidades que sua própria mãe não teve. Ela é segura de si, algo que é apontado por Fabinho como algo “estranho”, mas ela simplesmente não tem motivos para acreditar que é inferior a qualquer pessoa. É preciso concordar com Bárbara: o Brasil está mesmo mudando, e Jéssica é o melhor retrato desse futuro.
Se para muita gente entrar na faculdade é apenas a ordem natural das coisas, para pessoas como Jéssica pode significar uma tremenda mudança de vida. Por isso me emocionei tanto quando Val liga para dar os parabéns à filha por ter passado na faculdade, super feliz e orgulhosa da conquista; me transportou de volta para a época em que entrei na faculdade pelo Prouni, lembrei da alegria dos meus pais, do apoio da família. Acompanhar a trajetória de Jéssica é ficar verdadeiramente feliz pela personagem, por saber na pele que aquela conquista guarda uma grande transformação para a vida dela, assim como aconteceu com a minha.
É até difícil ver o filme com algum distanciamento, se vi naqueles personagens reflexos de histórias tão familiares, de pessoas tão próximas a mim, que têm ou tiveram mães domésticas, que foram morar longe para poder trabalhar, que tiveram que deixar a família pra trás, que fizeram escolhas difíceis.
Não é só nas linhas gerais da história que a verdade humana do filme transparece; nada no filme parece ser por acaso e cada detalhe acrescenta camadas de significado ao filme. Achei bem curiosa a relação de Val com Meg, a cadela da casa. Para os cães, a hierarquia é algo muito importante, mas é engraçado que o cachorro seja indiferente à hierarquia estabelecida ali dentro. Meg não vê os donos da casa como seus líderes, mas sim Val. A cachorra segue Val para todo lado, obedece suas ordens, fica feliz quando ela passa, vê ela como sua “alfa”. Val conversa com a cadela e até dá bronca. Quando está de mau humor, é em Meg que ela desconta suas frustrações, quase como se estivesse refletindo ali, de forma mais explícita, a forma com que ela mesma é tratada por seus patrões.
Outro detalhe que não pude deixar de notar é o jogo de xícaras que Val dá de presente para Bárbara. Pode ter sido por acaso, pode não ter sido intencional, pode ser a mais pura viagem da minha cabeça, mas achei emblemático que o jogo fosse uma mistura de pires brancos com xícaras pretas ou pires pretos com xícaras brancas, dispostos assim, “descasados”, como diria Val, talvez representando uma ruptura das barreiras raciais e sociais, um desafio à ordem vigente. Bárbara rejeitar o presente e ficar horrorizada com a tentativa de Val servir café aos seus convidados nesse jogo “pobrinho” acaba dando mais profundidade a esse simbolismo. Mas essa interpretação é totalmente por minha conta, viu? Desculpa aí, Anna Muylaert, se eu estiver viajando.
Eu poderia ficar aqui alimentando a sua barra de rolagem por mais algumas horas, mas a história é tão rica que é impossível esgotá-la. Além disso, ela dialoga com outras obras, como o documentário “Domésticas”, ou esse clipe do Emicida. Se em “Boa Esperança” a ruptura é representada como uma insurreição contra a “Casa Grande”, em “Que Horas Ela Volta?” essa essência é representada de forma sutil, mas não menos poderosa: com uma filha de empregada pulando na piscina ou “assaltando” o sorvete caro do sinhôzinho.
Fiquei pensando se um espectador gringo, assistindo ao filme lá fora, conseguiria captar a grandeza e a sensibilidade da história, uma história tão brasileira, tão íntima, que nenhuma legenda seria capaz de traduzir com precisão o significado daquelas conversas, daquelas relações – embora o filme seja tão humano que possa transcender essas barreiras culturais e nacionais.
“Que Horas Ela Volta?” pode se tratar de ficção (e de boa ficção), mas serve como um registro histórico do nosso momento atual, além de um resumo divertido, trágico e dramático, tudo ao mesmo tempo, da história de um país e de um povo extremamente contraditório, marcado pela exploração, pela saudade de casa e pela esperança de uma vida melhor.