Mais do que nunca, as pessoas hoje se mostram muito mais. São transparentes as películas que vestimos para interagir nesse mundo onde todo mundo é mídia, onde todo mundo é mensagem.
Apenas olhe ao redor: tantas câmeras e telas, tantas vidas refletidas nelas. No Facebook ou Instagram, no Twitter ou Snapchat, em fotos, vídeos ou mensagens de texto. Nada parece escapar: nascimentos, viagens, relacionamentos, tardes de tédio, um dia no trabalho.
George Orwell acertou em cheio ao imaginar um futuro ultravigiado. Talvez tenha errado apenas ao achar que as câmeras estariam a serviço de um Grande Irmão, quando, na realidade, ela está nas mãos das próprias pessoas – e elas nem estão sendo forçadas a se autovigiar.
Nos mostramos em todos os lugares, todo o tempo. Mas o quanto de transparência há nisso?
Todo esse oversharing parece ser inversamente proporcional à quantidade de verdade que há naquilo que é compartilhado. Amigos falsos, intenções escondidas, sorrisos editados, histórias inventadas; apresentamos ao mundo um “eu” maquiado.
O que acho completamente compreensível: a mentira é um ambiente confortável, quase como o berço de onde saímos.
Nascemos para mentir?
Se tem uma coisa que tirava a minha mãe do sério, quando eu era criança, era quando ela me pegava na mentira. “Eu não criei filho mentiroso!”, ela gritava, braba da vida.
A pequena Aline aprendeu desde cedo que mentir é errado. Lembro que um dos primeiros ditados que perguntei o significado era o “mentira tem perna curta” (porque eu imaginava, veja só que loucura, que o Pernalonga tinha esse nome por só dizer a verdade).
E quem nessa idade não tinha medo de contar uma mentirinha e ver seu nariz realmente crescer?
Mas uma coisa que a pequena Aline não sabia era que ela não podia mentir não porque isso ofendia os pais ou um deus, mas porque dizer a verdade aos meus pais os ajudava a proteger minha própria vida.
“Onde você estava? Com quem você estava falando? O que você colocou na boca?” Os pais precisam de algumas informações para cuidar de nós, e as coisas podem ficar um pouco complicadas se a gente mente ou oculta fatos.
A pequena Aline, no entanto, não compreendia esse detalhe (porque era uma bocozinha que não compreendia muitas coisas). Ela achava que mentir era errado e talvez pensasse que os adultos, aqueles que sabem de tudo (como cozinhar ou fazer divisão de números com mais de dois dígitos, coisas realmente incríveis!), sabem também que mentir é errado e, por serem muito mais evoluídos que nós, são criaturas que não mentem. Ai, que erradinha que eu estava.
Eu viria a descobrir que, com a idade, as pessoas não deixam a mentira para trás, como se fosse algo que só crianças mal-criadas fazem. Elas não só continuam a mentir como passam a contar mentiras cada vez mais elaboradas. Viramos profissionais do caô.
Pensando bem, justamente aqueles mais interessados em nos manter falando a verdade, nossos pais, foram os primeiros a nos motivar para mentirmos melhor. Ou você acha que as broncas da minha mãe não me faziam ser mais cuidadosa ao encobrir os vestígios das próximas mentiras?
Nesta palestra do TED, Pamela Meyer, autora do livro Liespotting (Detectando Mentiras), conta como a mentira nos acompanha durante a vida. Quando bebês, somos capazes de fingir o choro para chamar a atenção dos adultos; com dois anos, blefamos; com cinco, já manipulamos os outros por meio de bajulação; aos nove, nos tornamos mestres no encobrimento; na adolescência, chegamos a mentir para nossos pais em uma a cada cinco interações que temos com eles; quando adultos, entramos em um mundo de propagandas enganosas, ladrões de identidade, golpistas, fakes de internet, amigos falsos.
A mentira é profundamente humana. Ela está na nossa cultura, até no nosso DNA. Seria culpa do nosso neocórtex mais desenvolvido – como em outras espécies que também mostram uma propensão à mentira.
Pamela conta a história da gorila Koko, que aprendeu a se comunicar com humanos por meio de linguagem de sinais. Um dia, Koko teve um ataque de raiva e arrancou a pia da parede. Quando confrontada por seus cuidadores, ela jogou a culpa em seu gato de estimação, dizendo que foi o pequeno felino que havia feito aquele estrago.
(essa história é maravilhosa em tantos níveis que até parece mentira: uma gorila que fala. Uma gorila que fala e tem um gato de estimação. Uma gorila que fala, mente, e joga a culpa no gato de estimação).
O que mais me impressiona nisso tudo não é uma suposta determinação cultural ou genética que marque a mentira a ferro e fogo em nossas vidas. Mas o fato de sermos tão entusiasticamente contra a mentira enquanto secretamente a apoiamos (e usamos) nas formas em que ela é aceita pela sociedade.
A mentira é um ato cooperativo
É isso que diz Pamela em sua palestra: “uma mentira não tem poder algum meramente por ser expressa. Seu poder surge quando alguém concorda em acreditar na mentira.”
Essa é uma das bases que fundamenta a arte de contar histórias: como escritora, preciso convencer meus leitores a acreditar naquela história e naqueles personagens para que eu continue a contá-la. As pessoas que leem precisam ser minhas cúmplices, ou não consigo ir adiante.
Quando a história não nos convence, perdemos o interesse por ela. Não nos envolve. Quantas vezes você já não assistiu a um filme e começou a detestar porque o roteiro era mentiroso demais? Ou não conseguiu se envolver porque a interpretação era tão ruim que você conseguia perceber que era tudo falso? Ou o sangue era tão mal feito que você não conseguiu se chocar com a cena de assassinato, porque só conseguia pensar em como a produção estava tosca?
Sem a nossa cooperação, a mentira se esfarela. No entanto, se a mentira se sustenta, o mérito não é apenas do mentiroso, mas também da pessoa “enganada”. Ambos estão juntos nessa.
Uma das coisas que aprendi ao mentir (olha eu revelando meus segredos, hein): nunca contar a mentira de uma vez só. Começo com uma pequena parte, geralmente com a parte mais “factível” da mentira. Se percebo que a pessoa foi fisgada, continuo a contar a mentira, uma parte por vez, vendo até onde a pessoa me ajuda acreditando naquilo que estou contando. Talvez eu não seja muito boa nisso, porque, em determinado momento, começo a exagerar a história um pouquinho além da conta, inserindo detalhes bem absurdos – só porque acho interessante observar qual é o limite de suspensão de descrença das pessoas. Bem, aí elas percebem que eu inventei a coisa toda. Mas também percebem, às vezes constrangidas, às vezes com raiva, que elas chegaram a acreditar.
E essa é uma das coisas mais ridiculamente maravilhosas a respeito das pessoas: somos todas mentirosas, crescemos mentindo, vivemos em uma sociedade rodeada de mentiras e, ainda assim, estamos dispostas a acreditar, porque somos naturalmente crédulas. Não é incrível?
Nesta outra palestra (me segura que tô cheia das palestras hoje), Michael Shermer, fundador da revista Skeptic Magazine, fala o seguinte:
“Eu quero acreditar e vocês também querem. E, de fato, acho que a minha tese aqui é que a crença é o estado natural das coisas. É a opção ‘default’. Nós apenas acreditamos, e acreditamos em todo tipo de coisa. A crença é natural. Descrença, ceticismo, ciência, não são naturais. É desconfortável não acreditar em coisas.”
Ele explica que isso se deve a um mecanismo de sobrevivência muito primitivo da nossa espécie. Pessoas são criaturinhas que associam coisas; ligam o ponto A ao ponto B, fazem conexões.
Algumas dessas associações podem nos trazer recompensas (se eu fizer isso, ganho aquilo), ou salvar nossas vidas (se acontecer isso, corro tal perigo). O exemplo que ele dá: sou um hominídeo que vive na savana 3 milhões de anos atrás. Se ouço um barulho na grama, posso associar com duas possibilidades: será apenas o vento ou um predador se aproximando? Terei mais chances de sobreviver se acreditar que é um leão, mesmo que não seja. Há um custo muito alto que não estamos dispostas a pagar ao não acreditar em determinada possibilidade.
É por isso que as pessoas passam pra frente as mais absurdas correntes de whatsapp e e-mail: vai que, né?
Conheço uma pessoa que costumava repassar qualquer hoax que lhe mandavam por e-mail. Teve uma vez que ela me encaminhou (e pra uma penca de gente) uma mensagem procurando por uma garota supostamente desaparecida, chamada Ashley Flores. Tinha a foto dela (tinha a maior cara de americana), dizia que havia se perdido em Brasília, dava até nome completo e profissão do pai, mas era vago em outros detalhes, como a data do acontecido (“no último sábado”).
Tive que responder e explicar pra ela que não, aquilo não era real, não tinha nenhuma Ashley Flores desaparecida, olha só esse link, aqui diz que esse hoax circula desde 2002, toma cuidado, não encaminha esses e-mails, etc, etc.
O que ela me respondeu? “Ah, tem razão, pode ser mentira. Mas vai que, né? Não custa passar pra frente”.
Continuamos os mesmos primatas que acreditam em coisas para sobreviver; a diferença é que hoje temos e-mail.
Mas se não fôssemos essa multidão potencialmente crédula, essa população de 7 bilhões de mentirosos não teria ninguém para acreditar em suas histórias, não é mesmo? Na cadeia alimentar da mentira, estamos no topo e na base da pirâmide; somos enganadores e enganados, ao mesmo tempo.
Uma questão de esforço
Quantas desculpas você já não inventou para faltar em algum compromisso? Aposto que já usou o famoso “tô ocupado” ou “nossa, tá muito corrido por aqui”, mesmo quando você não está.
Mas não condeno, não mesmo. Acho que, para os hominídeos modernos, essa é uma questão de sobrevivência. Compromissos demandam esforço e, cada vez mais, precisamos pensar em quais deles vale a pena priorizar. É impossível estar disponível a tudo e a todos.
Há quem ache que é preciso fazer um esforço maior para estarmos disponíveis, como a autora deste texto:
“Disponibilidade tem tido tudo a ver com verdade. Com o interesse genuíno no outro. Para quem e para o que tenho interesse, surge a disponibilidade. Se tenho interesse em trocar com o outro, como não terei disponibilidade para ele? Tem a ver com dar uma resposta honesta quando alguém te pergunta se está tudo bem e assim dar a permissão para o outro fazer o mesmo. Ser verdadeiro te poupa um tempo enorme!”
E, de fato, mentir demanda esforço. Acreditar pode ser uma postura natural, mas mentir exige de nós uma complexa elaboração mental, a criação de uma história, uma atuação. Ser verdadeiro pode nos poupar desse esforço, mas também nos colocar em apuros: nem sempre a verdade é bem aceita.
O que realmente pouparia um tempo enorme é poder dizer “não vou porque não estou a fim”, sem que acarretasse em um custo social gigantesco. Mas sabemos que não é essa a realidade.
Fotografia: kygp // via Flickr Creative Commons
Então é linda a proposta do texto acima, mas é uma lógica que ainda se submete ao que é socialmente aceito – no caso, estar disponível para os outros. E é em nome do que é socialmente aceito que mentimos – inclusive sobre mentir, afinal, pega mal não condenar fortemente a mentira.
A mentira surge quando calculamos que seu custo pode trazer algum benefício para a nossa imagem em relação aos outros ou para determinado relacionamento, inclusive os virtuais.
Por isso tanto esforço em mostrar apenas o melhor de nós, vidas perfeitas, pessoas muito corretas, muito bonitas, muito seguras de si etc, etc. Poder compartilhar tudo o que pensamos e o que fazemos não significa que mostramos mais a verdade, mas apenas que temos mais espaço para mentir.
Você pode me achar horrorosa pelo que vou dizer, mas o que acho problemático não são todas essas pessoas falsas (coisa que você também é, convenhamos), mas sermos essas trouxonas que acreditam em tudo que nos dizem.
Se evoluímos para contarmos mentiras cada vez mais elaboradas, acho que está na hora de evoluirmos para sermos menos crédulas, ou, ao menos, nos esforçar para ler a verdade por trás de uma mentira.
É ver que aquela pessoa que posta sempre fotos tão felizes e tão perfeitas pode esconder uma grande solidão; ou ainda aquela pessoa toda carismática que fala coisas fofas está segurando, no fundo, sua vontade de reclamar e dizer coisas amargas. É ver que aquela pessoa não é tão perfeita quanto mostra, e, acima de tudo, ver que tudo bem.
Tudo bem porque essas mentiras, em alguma medida, nos torna pessoas verdadeiras. E que mesmo uma mentira, ao não dizer diretamente algo, acaba dizendo muita coisa.
Não por acaso escolhi para a minha bio do Twitter a frase: “nunca falamos tanto a verdade quanto quando a inventamos”.
De volta à Pamela Meyer, da primeira palestra:
“Se você não quer ser enganado, você deve saber o que você deseja. E todos nós meio que odiamos admitir. Gostaríamos que fôssemos melhores maridos, melhores esposas, mais inteligentes, mais poderosos, mais altos, mais ricos… e por aí vai. Mentir é uma tentativa de preencher esta lacuna, de conectar nossos desejos e fantasias sobre quem gostaríamos de ser com quem realmente somos.”
Acho isso mais louvável do que simplesmente “ser verdadeiro”. Primeiro, porque nossa verdade pode ser detestável demais para suportar; pode custar relacionamentos, pode ferir os outros.
Quando criamos essa persona que gostaríamos de ser e começamos a nos esforçar para, cada vez mais, ficarmos mais próximos dessa “mentira”, uma hora ou outra, essa pessoa que desejamos ser vai se tornar quem realmente somos.
Se fingirmos tempo o suficiente que somos pessoas boas, fazendo e falando apenas coisas que pessoas boas falariam e fariam, eventualmente nos tornaremos essas pessoas boas.
Ser verdadeiro pode poupar tempo, mas às vezes um esforço maior para sermos outra coisa pode valer mais a pena.
A verdade aprisiona
Quando alguém me diz que é uma pessoa “verdadeira”, que é, na internet ou na vida fora dela, a mesma pessoa, que se mostra igual para todo mundo, eu vou sorrir e concordar, mas não vou acreditar nela.
Não que ela esteja mentindo, mas não vou acreditar porque não concordo. Porque não acho possível. Porque, mesmo se for possível e se for verdade, não acho necessariamente uma coisa boa.
Criamos uma “interface” diferente para lidar com cada relacionamento e com cada situação. Na internet, agimos de uma forma e dentro do trabalho agimos de outra; falamos de um jeito com nossos pais, de outro com nossos parceiros amorosos, e ainda de outro com desconhecidos; somos uma pessoa com um grupo de amigos e outra completamente diferente com outro grupo de amigos.
Isso não é “falsidade”; é assumir que as relações humanas são complicadas, diversas e que a troca que vamos estabelecer com cada pessoa vai exigir de nós atitudes únicas. É assumir que somos criaturas profundas, complexas, com várias facetas e que nunca vamos conseguir ser resumidas em uma só dimensão.
Mas ainda assim vamos valorizar quem se diz “verdadeiro”, como o participante de reality show que tenta convencer o público de que no programa ele é exatamente a mesma pessoa que é na “vida real”. Você acredita? Eu não.
O negócio é que a verdade é superestimada. Por algum motivo, atribuímos a ela um valor moral que seria superior. Como se, necessariamente, a verdade fosse sempre boa – e a mentira, sempre má.
Em seu texto Prisão Verdade, Alex Castro desconstrói as nossas certezas a respeito da verdade:
“Um martelo não é ‘bom’ nem ‘ruim’. Não faria sentido falar de um martelo nesses termos. Se quero colocar um prego na parede, um martelo é útil. Se quero trocar uma lâmpada, um martelo é inútil. A Verdade não é um valor, ela é uma ferramenta. Algumas vezes, é útil. Em outras, só atrapalha.”
A mentira, assim como a verdade, é uma ferramenta.
E uma ferramenta muito mais antiga do que qualquer rede social que usamos hoje para compartilhar tanto da nossa vida. Então, se precisamos assumir alguma coisa não é a verdade por trás das mentiras que contamos, mas sim o fato de que a mentira é uma das coisas que nos tornam possíveis como seres sociais – assim como o fato de que somos muito mais mentirosos do que gostaríamos de assumir.
Mentir, eis o problema:minto de vez em quandoou sempre, por sistema?.Se mentir todo dia,erguerei um casteloem alta serrania.contra toda escalada,e mais ninguém no mundome atira seta ervada?.Livre estarei, e dentrode mim outra verdaderebrilhará no centro?.Ou mentirei apenasno varejo da vida,sem alívio de penas,.sem suporte e armaduraante o império dos grandes,frágil, frágil criatura?.Pensarei ainda nisto.Por enquanto não seise me exponho ou resisto,.se componho um casuloe nele me agasalho,tornando o resto nulo,.ou adiro à supostaverdade contingenteque, de verdade, mente..(“Dois Rumos”, por Carlos Drummond de Andrade)
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Texto originalmente publicado na newsletter Bobagens Imperdíveis #65. Assine grátis e receba em seu e-mail estes textos em primeira mão.
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Leia também: Em defesa dos que creem.
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Fotografia da capa: Alejandro Linares Garcia // via Wikimedia Commons.