À nossa imagem e semelhança

Quando decidi que queria saber desenhar, comprei várias revistinhas que ensinavam os passos básicos. Você já deve ter visto dessas. Aprenda a desenhar mulheres. Aprenda a desenhar mangá. Como desenhar super-heróis.

Lembro que em uma delas havia uma dica mais ou menos assim: “se você quer desenhar uma folha, em vez de usar como referência a folha que outro artista desenhou, você busca como referência uma folha de verdade, na natureza. Quanto mais próximo da realidade for a sua referência, melhor será o seu desenho”.

Mesmo uma foto super detalhada de uma folha já não é mais a folha. Parafraseando Carl Sagan, há um custo para representar um objeto tridimensional em um meio bidimensional – e esse custo significa a perda de informações.

Então mesmo naquela época eu já saquei o valor daquela dica. Quanto mais próxima do real for a minha referência, mais informações e detalhes eu vou ter para criar a minha própria representação daquilo.

As revistinhas até que foram úteis no meu processo de aprendizado, mas também serviram para me ensinar muita coisa errada e viciar meu traço em formas de representações que mais tarde eu veria como equivocadas. Se você já deu uma olhada nessas revistas, você sabe que “aprenda a desenhar mulheres” significa “aprenda a desenhar mulheres magras e brancas, dentro do padrão de beleza vigente, em poses altamente sexualizadas”.

Tinha um desenhista que eu usava muito de referência na época, o Eugênio Colonnese (juro que não é por causa dele que meu gato chama Eugênio), que era conhecido por desenhar mulheres bem peitudas e bundudas, sempre em poses eróticas, mesmo que fossem guerreiras bárbaras lutando contra gigantes. Veja bem, foi isso que eu aprendi a respeito de representação feminina quando comecei a desenhar.

Por ver esse tipo de representação feita por todos os artistas que eu conhecia e em todas as HQ’s que eu lia, meus desenhos também refletiam isso, de forma que eu tinha uma pasta cheio de desenhos de mulheres (porque nunca curti muito desenhar homens), mas elas eram quase todas corpudas, tesudas e com roupas sensuais.

Eu desenhava bastante e melhorava meu traço cada vez mais, mas o que eu ainda não percebia na época era que eu não estava me tornando especialista em desenhar mulheres, mas sim em desenhar idealizações e estereótipos que criaram sobre as mulheres – e, consequentemente, sobre mim mesma.

No vídeo produzido pela artista Raquel Vitorelo, ela conta o que significa ser uma mulher que desenha em um mundo onde a mulher é quase sempre representada de forma distorcida:

“Eu sempre penso naquela menina de oito anos que resolveu ser desenhista. Eu vejo desenhos antigos que eu mesma fiz, histórias que eu inventei e vejo a reprodução de ideias negativas sobre mulheres que pouco tinham a ver com o repertório de uma menina tão nova. E, mesmo assim, lá estavam elas, porque é assim que a sociedade vê a mulher e, por consequência, vê a menina. E, aos poucos, é assim que a menina se vê.”

É o lance da folha que falei ali em cima. Eu tinha o tempo todo uma referência verdadeira ao meu alcance (eu mesma!) mas eu preferia buscar o ponto de vista do outro sobre aquele assunto para eu poder representá-lo. Buscava no repertório de estereótipos e clichês o molde e a matéria-prima que eu usaria para ilustrar minhas próprias personagens.

Acho que esse exemplo do desenho se encaixa perfeitamente na ficção. Muitos autores recorrem a esse repertório para criar os personagens de suas histórias. Acaba saindo o quê? Homens no papel tradicional de heróis que salvam o dia e fazem coisas impressionantes sem muito esforço, ou que são especiais simplesmente porque sim; mulheres que servem como interesse romântico desses caras, alguém para ser salva, sem muita vontade própria, mas que pelo menos servem para enfeitar a história. Ou qualquer outro tipo de estereótipo que você conseguir se lembrar e que já usaram a rodo no cinema, na literatura, enfim, no fabuloso mundo da ficção.

Ao meu ver, o problema disso vai além de representações que não sejam “feministicamente corretas”, mas de personagens mal construídos com os quais não consigo me identificar. São cascas vazias. Personagens achatados, superficiais, inverossímeis.

Esses personagens não são pessoas, mas clichês. A gente não sofre, se apaixona ou se emociona por um clichê. A gente sente coisas por pessoas.

Por mais que a ficção se trate de inventar histórias e realidades que bem podem ser absurdas, fantásticas ou esquisitas demais para existirem na nossa própria realidade, acredito que a boa ficção, aquela que de fato consegue nos colocar dentro da história e ao lado de seus personagens, precisa de uma boa dose de verdade para funcionar.

Na minha opinião, o que define uma boa história não é se ela foi escrita corretamente ou se tem efeitos especiais impressionantes; mas se ela possui verdade. É usar como referência a folha real, da natureza, para escrever sobre uma folha que não existe e assim materializar na mente do leitor uma folha com peso, textura, cor, enfim, que convence como folha.

É um troço muito difícil construir personagens que convençam, que façam o leitor sentir alguma coisa. Mas quando o autor não consegue, é bem fácil reparar, mais fácil do que notar um zíper aberto ou uma couve no dente. Muitas vezes, diante desses personagens estereotipados, eu sinto que naquela história não há uma pessoa, mas uma marionete sendo manipulada pelo autor, que força uma voz ridícula para parecer que é o personagem que está falando. Soa escancaradamente falso.

Eu não levava muita fé quando a Olivia Maia me falava de personagens que faziam coisas contra a vontade dela, como se eles tivessem vida própria. Mas é bem isso. Personagens bem construídos têm várias dimensões e são complicados demais para caber nas nossas idealizações a respeito deles.

E todo tipo de idealização, não importa de que lado venha, é um totem que esmaga qualquer verdade que venha a existir naquele personagem ou em sua história. A idealização achata.

Por isso os estereótipos que vemos na ficção no geral são tão cansativos. Porque são ocos. Porque são representações tão viciadas quanto a do traço de quem aprende que a forma “certa” de desenhar uma mulher é fazendo ela magra e sensual. A mulher ideal. O herói ideal. E essas representações se repetem incansavelmente através dos séculos e alimentam toda uma nova safra de obras que vão trazer as mesmas representações. Um ciclo sem fim.

Isso acaba sendo refletido na falta de diversidade da ficção, que inclusive vem sido discutida e questionada amplamente. Porque veja, se olharmos para a natureza, para a realidade onde buscamos a referência para a nossa arte, vamos ver que as folhas existem em diferentes formas, tamanhos e reagem de uma forma bem única quando o vento as carrega. Mas olhamos para os livros e filmes e vemos praticamente uma única folha, de uma única cor e tamanho fazendo o mesmo movimento ao vento. Entende?

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Por que eu deveria me importar com uma história ou com um personagem que repete padrões e estereótipos que já estou cansada de ver? Por que eu deveria me entusiasmar com uma história onde não me vejo representada? Ou pior: com uma representação falsa feita para me agredir e me invalidar?

A ficção que se recusa a usar estereótipos abre espaço para a diversidade – e, pelo fato da diversidade ser um aspecto muito verdadeiro a respeito da nossa vida, consequentemente acaba abrindo espaço também para a verdade.

Claro que não é só colocar um personagem que não seja homem branco hétero classe média e tchuns, resolvido. É mais complexo do que isso. Mesmo quando um personagem foge ao padrão ele também precisa ter verdade em si. Precisa convencer ou, da mesma forma, vai ser um fantoche e não algo que podemos identificar como uma pessoa. E, sem verdade, a ficção esfarela.

O lance é buscar a verdade onde ela existe para depois misturar tudo no Liquidificador da Arte. E essa verdade pode ser encontrada em nós mesmos. Nas pessoas à nossa volta. Olha que legal, podemos beber direto da fonte! Olhar para a folha em seu ambiente natural em vez de buscar a representação da folha de outros artistas, que sempre, sempre vão ser representações incompletas.

Mas quando há verdade nas histórias que contamos, ganhamos não só pela possibilidade de sermos tocados pela mensagem contida ali, mas também pela possibilidade de nos reconhecermos nela e sentirmos que a ficção nos aceita, com todas as nossas contradições, fraquezas e diferenças.

Pessoas, na ficção ou fora dela, são muito maiores do que as idealizações que criam sobre elas. É por isso que uma folha é sempre mais bonita quando não está presa em apenas duas dimensões.

Publicado originalmente na edição #72 da newsletter semanal Bobagens Imperdíveis.

Fotografia da capa: Daniel Silva Lopes // via Flickr Creative Commons.