Quando é o protagonismo coletivo que conta a história

De Game of Thrones e Mad Max a Sense8: como essas histórias mostram o poder das ações coletivas

 

Nunca me atrevi a fazer análises sobre As Crônicas de Gelo e Fogo, livros escritos por George R. R. Martin, ou sobre a série da HBO baseada em sua obra, por entender que não consigo comentar de forma adequada uma história que ainda não terminou – o autor ainda está escrevendo os livros e a série vai ter sabe-se lá quantas temporadas. Muita coisa ainda pode acontecer (especialmente se estamos falando de Game of Thrones e suas dramáticas viradas narrativas), então meus comentários se tornariam inúteis, equivocados ou até mesmo sem sentido.

Mas não deixo de acompanhar as discussões e teorias que orbitam essa história sobre disputas de poder em um mundo de cavaleiros, reis, rainhas, conspiradores, guerras, assassinatos, monstros, dragões e mortes, muitas mortes (definitivamente, não é uma história para quem se apega demais aos personagens). Entre as tantas discussões que os fãs fomentam, há uma pergunta frequente: “sobre quem é essa história?”

“O nome já diz”, alguns respondem. “As Crônicas de Gelo e Fogo. Gelo, Jon Snow. Fogo, Daenerys Targaryen. Eles são os principais!” Faz sentido. E até gostava de imaginar os dois personagens de polos tão extremos encontrando-se depois de acontecimentos improváveis para reinar sobre Westeros e derrotarem juntos, com fogo de dragão, a ameaça congelante que vem do norte.

Mas se a história se trata sobre os dois, por que trazer a perspectiva dos outros personagens? Ou ainda: por que trazer a perspectiva de personagens que não só não têm protagonismo algum quanto podem morrer sem mais nem menos na próxima esquina narrativa?

Busquei a resposta em outras teorias, se autor e produtores da série estão mais ocupados em dar continuidade à história, e cheguei a uma perspectiva sobre Game Of Thrones de que gosto bastante (e que vale tanto para a série quanto para os livros): todas as intrigas e disputas de poder que servem de base para a trama não passam, na verdade, de uma cortina de fumaça.

Se os Lannisters vão conseguir se manter no Trono de Ferro, se os Starks vão conseguir sobreviver, até onde Mindinho é capaz de chegar com suas tramóias políticas, se Daenerys vai conseguir atravessar o Mar Estreito e reivindicar o Trono que é seu por direito, quem vai ser aliado de quem, quem vai ser derrotado na próxima batalha, quem vai casar com quem, quem vai matar, quem vai morrer, nada disso importa.

Enquanto essas pessoinhas ficam andando de um lado para o outro, matando e morrendo, ocupadas demais com suas intrigas, o inverno está chegando e, com ele, os caminhantes brancos que podem simplesmente extinguir toda essa civilização. Então não terá mais importância quem estava ganhando o jogo dos tronos, se no final todas as peças estarão mortas.

Essa seria a pista de que a história não é sobre disputas de poder, mas sobre mudanças climáticas – e sobre como os personagens não estarem dando a devida atenção para isso pode representar o fim de suas vidas e de toda a civilização que construíram.

Neste artigo, o autor Charli Carpenter faz um interesse apontamento a respeito da obra de George R. R. Martin:

“O slogan o inverno está chegando tem significado tanto literal quanto metafórico: forças planetárias movem-se lenta e inexoravelmente em direção a uma catástrofe climática enquanto as disputas entre reis e rainhas os distraem do quadro maior. Esta é uma história de ação coletiva, com a Patrulha da Noite alarmando de forma crescente e desesperada e ainda assim recebendo respostas indiferentes.”

Tentar descobrir ou eleger os protagonistas dessa história é perder de vista sua mais brilhante característica: ser uma história de ação coletiva. Não é um ou outro protagonista que conduz os acontecimentos como na maioria das narrativas, mas todo um conjunto de pessoas através dos séculos. É uma história a longo prazo. Por isso há tantos livros e, dentro deles, sempre o resgate a ações que aconteceram no passado, bem antes daqueles personagens terem nascido. Por isso a impiedade do autor em liquidar os personagens que até então eram considerados principais e fundamentais. Porque a função deles é integrar o todo com suas ações; e o todo continua mesmo que esse personagem não esteja mais lá.

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Todo e qualquer protagonismo acaba sendo diluído pelas grandes dimensões deste cenário. Pessoas espalhadas pelo mundo, muitas vezes sem a menor conexão entre si, que até ignoram a existência uma da outra, acabam construindo em conjunto as ações que podem determinar a sobrevivência da espécie e dos sistemas culturais e políticos que a sustentam. A grande ameaça não são as pessoas de casas ou reinos inimigos, afinal, são todas pessoas. O verdadeiro inimigo seriam as forças da natureza que as habitantes daquele mundo não são capazes de controlar, nem com todo o poder político, dragões ou feitiçaria.

Fora de Westeros, no mundo real, também estamos sujeitos a essas forças incontroláveis, de um planeta que se move e se transforma independentemente da nossa vontade. Quando se fala em “salvar a Terra”, o que realmente estamos querendo dizer é “salvar a nós mesmos”. Porque a Terra – e a vida que se desenvolveu nela – já sobreviveu a cenários de devastação ainda piores, e vai sobreviver a nós também. Nós é que estamos em perigo.

Assim como olhamos para Game of Thrones tentando identificar protagonistas, olhamos para esse mundo e achamos que essa história é sobre nós. Queremos participar dela até o fim. Queremos que a história termine quando morrermos. Queremos ser alguém que faça a diferença – mas no fundo, só estamos aqui para passar o bastão.

Às vezes é um tanto assustador e desanimador pensar que talvez não estejamos vivos para ver alguma mudança na sociedade. Nossas vidas são ridiculamente curtas para permitir que, individualmente, tenhamos o distanciamento necessário para ver as coisas realmente mudando – e talvez as coisas mudem de uma forma nada favorável para nós.

Na ficção, conseguimos extrapolar essa perspectiva e imaginar cenários futuros, às vezes desoladores, que venham a existir muito depois que nossa geração passar o bastão para as próximas. Como um mundo sem água, desertificado pela exploração irresponsável que os seres humanos vêm conduzindo, a que somos apresentados no filme Mad Max: Fury Road.

“Quem matou o mundo?” A pergunta é uma das tantas falas memoráveis que atravessaram o deserto amarelado e as estradas empoeiradas do filme e que conseguiram continuar ecoando do lado de cá, mesmo depois que a história, pelo menos na tela, termina.

É uma pergunta particularmente inquietante porque exige um nome que não somos capazes de dar como resposta. Como poderíamos saber quem é o responsável por transformar o nosso mundo no cenário pós-apocalíptico de escassez e violência a que somos apresentados na última obra (e no novo clássico) de George Miller?

Da mesma forma que não conseguimos apontar um nome em Game of Thrones, não é possível responder a essa pergunta atribuindo essa responsabilidade a alguém em específico. Foi uma sucessão de ações coletivas, a longo prazo, que fizeram com que o mundo e a sociedade se transformassem no palco onde Max, Furiosa, Immortan Joe e todos os outros resolvem suas questões. E, pelo que a introdução do filme dá a entender, essas ações coletivas envolveram guerras nucleares e exploração exaustiva de recursos naturais durante séculos.

As ações coletivas não estão apenas no background sugerido de Mad Max: Fury Road; elas também estão no centro da história principal. Por mais que Max esteja no título do filme e que Furiosa seja considerada a verdadeira protagonista, uma leitura atenta do filme não me permite ignorar a presença e a importância dos outros personagens no desenrolar da ação.

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Em Mad Max: Fury Road, não há um herói ou uma heroína que sozinhos conduzem a história, mas um grupo de pessoas que agem juntas. As noivas, Nux e as Vuvalinis integram, com suas escolhas e ações, um coletivo com um objetivo em comum: libertação, esperança, mudança.

Furiosa resgata e foge com as noivas que eram abusadas pelo tirano Immortan Joe, mas isso não significa que ela as carrega no colo, fazendo tudo por elas, como é esperado do papel de herói tradicional. Ela espera que aquelas mulheres corram com as próprias pernas e sejam ferramentas ativas naquela fuga. Se em um primeiro momento e partindo de uma leitura superficial as noivas podem ser consideradas mulheres indefesas, objetos que estão ali para o deleite dos homens e para serem carregadas de um lado para o outro, o filme desmonta essa expectativa em vários momentos ao mostrá-las contribuindo para a ação e protegendo umas às outras.

Max também foge do papel de herói tradicional ao apresentar uma mudança de planos como uma sugestão, não como uma imposição de um protagonista que pode simplesmente deslocar seu grupo como se fossem peças sem vontade própria em um tabuleiro. Quando ele e Furiosa se dão as mãos, numa cena emblemática que reconhece a liderança da mulher, o filme também reforça o caráter colaborativo que envolve aquele grupo de pessoas.

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Ali, os personagens têm diferentes origens, motivações e histórias de vida; mas, naquele momento, as diferenças deixam de importar e cada um passa a dar o seu melhor para ajudar o coletivo. O importante é que o grupo continue avançando, mesmo quando alguns dos personagens morrem no meio do caminho. A morte de um indivíduo não consegue deter as engrenagens de uma história que não é somente sobre eles; não é sobre Max, Furiosa, Nux, Splendid, mas sobre uma chance de sobrevivência e de uma vida diferente para aqueles que vierem depois. “Meu filho não será um senhor de guerra”.

Nenhuma cena representa melhor as ações coletivas movendo uma história maior, a longo prazo, do que quando uma das Vuvalinis, uma mulher bastante idosa que é ferida fatalmente no meio da perseguição, passa adiante para uma das jovens noivas sua maleta cheia de sementes, para trazer o verde de volta àquele mundo. Ela não chega a viver para ver um mundo diferente, e talvez nem a jovem Dag consiga viver para tanto, mas ali ela passa o bastão num gesto de admitir que uma vida sozinha não é o suficiente para promover uma grande mudança.

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O que achei curioso é como um filme tão violento – e criticado por alguns por “glorificar a violência” – possa ter servido como pano de fundo para uma mensagem tão poderosa sobre cooperação e ajuda mútua. É o filme nos dizendo que, se olharmos com atenção para o deserto, com certeza vamos encontrar algumas flores, ainda que essa flor seja um frágil garoto de guerra entendendo que a verdadeira bravura está em ajudar outras pessoas em vez de obedecer quem está no poder para oprimir.

Tanta integração entre os personagens eu só conseguiria ver depois em Sense8, seriado produzido pela Netflix e dirigido pelos irmãos Andy e Lana Wachowski, os mesmos que criaram o universo de Matrix. Como no trabalho que os consagrou, a primeira temporada dessa série chamou a atenção por conseguir trazer para a ficção questionamentos filosóficos profundos.

As semelhanças param por aí; se em Matrix os seres humanos estão aprisionados pelas máquinas e conectados a um programa de computador, em Sense8 vemos pessoas profundamente conectadas entre si. O foco não é tanto em um mundo diferente do nosso, como em Matrix, mas na existência de pessoas que tornam o nosso mundo diferente.

Basta ver alguns episódios para sacar que a premissa da série se baseia em empatia. Em Sense8, há oito pessoas de culturas, personalidades e habilidades muito distintas, espalhadas pelo mundo, que repentinamente se descobrem conectadas entre si; capazes de visitarem umas às outras e até mesmo de entrarem na pele umas das outras para agir em nome da outra, compartilhando todas as suas sensações e pensamentos.

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Elas passam um bom tempo descobrindo esse novo “talento”, fazendo visitas esporádicas e absorvendo as confusas informações sensoriais que pertencem a uma pessoa que elas não estão vendo. Algumas pessoas se conectam mais do que as outras, conseguindo se conhecer melhor, bater um papo, trocar conselhos, brigar pela outra quando a situação aperta e até mesmo se apaixonar.

Alguns acharam lento o desenvolvimento da série, mas isso se deve à atenção que é dada a cada personagem, para que o espectador consiga criar com eles um laço tão forte quanto aquele que os une. É como se fôssemos o nono sensate do grupo: é possível rir, se desesperar, sentir raiva, angústia, medo, tesão e se apaixonar ao mesmo tempo em que esses sentimentos atravessam os personagens. “Você não é mais só você”.

À medida em que o seriado avança, os personagens se envolvem em mais situações que exigem interação e ajuda mútua entre eles, passando a resolver seus problemas juntos. Não é mais como contar apenas com suas próprias habilidades, mas de repente poder ser alguém que é policial, bandido, hacker, porradeiro, motorista de fuga, cientista e ator, tudo ao mesmo tempo. As fronteiras do ego começam a se dissolver e a noção de ser um só se sobrepõe ao resto: são as ações coletivas marcando presença novamente para conduzir outra história.

J. Michael Straczynski, roteirista e diretor junto com os irmãos Andy e Lana Wachowski, contou sobre o ponto de partida da ideia para Sense8:

“Começamos de um ponto falando sobre como a evolução se desenvolve para criar círculos cada vez maiores de empatia: você pertence à sua família, depois você pertence à sua tribo, então duas tribos se conectam e você tem empatia pelas pessoas desse lado do rio, e se coloca contra as pessoas do outro lado do rio… e assim por diante através de vilas, cidades, estados e nações. Então, se uma forma mais literal de empatia pudesse ser disparada em oito indivíduos ao redor do planeta, que repentinamente se tornariam mentalmente conscientes uns dos outros, capazes de se comunicar tão diretamente entre si como se estivessem todos na mesma sala, como eles reagiriam? O que eles fariam? O que isso significa?”

Em certo momento da história, o personagem de Naveen Andrews (velho conhecido de quem acompanhou o seriado Lost), que funciona como uma espécie de mentor do grupo, explica o que são os sensates e porque eles são perseguidos na história. Os sensates seriam uma espécie diferente de homo sapiens, que existem desde o início da humanidade. Mas, ao contrário do que possa parecer, eles não seriam a evolução das pessoas normais. Nós, pessoas normais sem esses “poderes” de conexão wi-fi mental e sensorial, é que seríamos a evolução dos sensates.

Evoluímos dos sensates justamente porque fomos capazes de nos desconectar – dos nossos semelhantes e do resto da vida no nosso planeta. Só assim poderíamos matar e escravizar uns aos outros e consumir os recursos naturais sem consciência do coletivo para conseguirmos nos estabelecer em um ambiente de dominação e superioridade.

A mensagem que fica é que só conseguimos construir a civilização que conhecemos porque perdemos a nossa capacidade total de empatia.

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Mais ou menos o que acontece em Game of Thrones, se naquele mundo as pessoas também estão desconectadas dessa consciência coletiva, se ali existe a noção do “outro” que pode ser desumanizado e transformado em inimigo. E então se matam, se escravizam e criam intrigas entre si, apenas para ver quem consegue reunir a maior quantidade de poder – para dominar ainda mais o “outro”. Apesar de tão desconectados, os personagens de Westeros, Essos e além, mesmo sem a menor consciência disso, estão construindo com cada pequena ou grande ação um grande mural de consequências que leva, na assinatura, o nome de todos eles e de suas gerações passadas ou futuras.

Ao longo da nossa própria história, as ações coletivas mais serviram para justificar grandes atrocidades do que qualquer coisa, isentando os indivíduos participantes de qualquer responsabilidade em nossa própria autodestruição. Ao contrário do que sugere a série Sense8, nossa evolução parece ter dado errado se, quando agimos coletivamente, tendemos para um comportamento de manada, violento e irracional. Desde as turbas que partem para o linchamento até complexos sistemas genocidas mantidos por pessoas que não necessariamente faziam o trabalho sujo, mas mesmo assim o mantinham funcionando.

Mas se a ficção consegue mostrar situações em que as ações coletivas são baseadas na cooperação e empatia é porque ela está refletindo uma possibilidade existente na vida real.

Podemos, como a turma de Furiosa, trabalhar juntos para fugir das ruínas de um mundo estéril e violento, e tentar trazer a vida de volta, na tentativa de nos redimir dos erros daqueles que vieram antes de nós – porque eles, pensando bem, também são a gente. Podemos, aprimorando nossa capacidade de empatia ao nível dos sensates, entender quão frágeis somos e que por isso mesmo precisamos tanto uns dos outros.

Ou podemos, quem sabe, retomar a nossa conexão a uma consciência coletiva só quando levantarmos como mortos-vivos renascidos do gelo. E então não seremos mais conscientes de nada, porque será o nosso fim. A escolha cabe a nós – estes que vivem agora e os que levarão adiante o bastão no próximo punhado de séculos.

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“Se não nos autodestruirmos, poderemos um dia nos aventurar até as estrelas” (Carl Sagan)