Tenho um monstro que aprendi a esconder. Todos temos. É o que em nós existe de inacabado, de mal feito, de feio e mantemos longe da vista para não perturbar os outros.
Escolho sempre meu melhor ângulo para mostrar ao mundo. Todos escolhemos. De preferência, usando um bom filtro para que esse ângulo fique ainda mais colorido, mais agradável, mais interessante.
Sai no autorretrato o cabelo arrumado, o sorriso e o olhar sugestivo, mas fica de fora a unha do dedão do pé que passou da hora de cortar. O monstro nunca pode aparecer na foto.
O monstro incomoda, é inconveniente, porque revela alguma incoerência, algo que nos contradiz de forma constrangedora. E as pessoas têm uma obsessão por coerência que nem te conto.
É preciso ser pronta, bem resolvida, evoluída, não fracassar. Agir de acordo com o que se fala. Saber o que está fazendo, ter certezas, fazer sentido. Existir de forma correta.
Quase posso ouvir as vozes, uma patrulha imaginária dentro da minha cabeça que faz questão de lembrar que não sou ficha limpa, que tenho meus podres. Ela não sabe o que está fazendo. Ela tem medo. Ela fala porque é fácil. Ela é uma fraude.
E quem não é?
Até quando vamos levar a vida como se fosse a merda de uma propaganda?
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Tem um programa na MTV que adoro assistir, o seriado Catfish (e talvez o Nev ser um fofo tenha algo a ver com isso). Nesse programa, pessoas que se relacionam com alguém na internet pedem para os apresentadores investigarem e descobrirem se estão mesmo falando com uma pessoa real.
Nev e Max são os “detetives” que vão em busca de pistas e contatos para tentar revelar quem é a pessoa de verdade por trás de determinado perfil. O programa é, basicamente, a pergunta: você é quem realmente diz ser?
São impressionantes as histórias contadas ali: pessoas que descobrem que a outra com a qual se relacionavam há oito anos na internet não existia, não passava de uma máscara para uma pessoa muito insegura; rapazes apaixonados por moças sensuais e meigas que ficam arrasados quando veem que o tempo todo estavam conversando com um homem gay; moças que descobrem que o galã por quem estavam apaixonadas tinha uma aparência completamente diferente; pessoas que se fingiam famosas ou influentes para conseguir a atenção, amor ou até dinheiro de outras; pessoas mentindo ou se escondendo pelos mais variados motivos.
É fácil pegar essa narrativa para mostrar como são horríveis essas pessoas que fingem ser outra coisa, que enganam, que mentem. É fácil odiá-las, pintá-las como más ou vilãs.
Mas não é o que Catfish faz; sempre há uma tentativa de entender a pessoa do outro lado, de mostrá-la humana, com suas inseguranças, medos e problemas (o Nev ser um fofo compreensivo tem tudo a ver com isso).
Há nelas a angústia de parecerem melhores, de mostrar seu melhor lado para aquela outra pessoa na internet. São pessoas que, não muito diferente de mim ou de tantas outras, aprenderam a esconder seus monstros.
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Na busca de ser uma pessoa melhor, muitas vezes perco de vista que isso não significa me tornar uma pessoa mais foda, mais completa, que não erra, que não tem sentimentos ou opiniões contraditórias, que é linda, se veste super bem ou atrai a atenção de todos numa conversa.
Uma amiga muito sábia um dia me lembrou que essa busca tem mais a ver com ser alguém pequena, perdida, cheia de dúvidas e erros e pensar que tudo bem.
Resolvi parar de esconder o monstro e dançar com ele. O monstro incomoda, é inadequado e pouco fotogênico, mas é o meu monstro.
Sou dentuça, sedentária, não faço as unhas, fico escrevendo contra idealização romântica mas sinto ciúmes, escrevo sobre padrão de beleza e me sinto insegura com minha aparência, não sei me vestir;
Tenho enorme carinho pelas pessoas mas não consigo expressar isso pessoalmente, não reconheço as pessoas na rua, e, dependendo de quem for, até reconheço, mas finjo que não;
Fico calada quando ouço uma coisa muito absurda, nunca sei o que dizer quando alguém morre ou tem filho ou faz aniversário ou fica doente, não gosto de dar presentes, especialmente em datas feitas para dar presentes;
Minto que está tudo bem quando estou na merda, minto que tenho tudo planejado quando estou completamente perdida na vida, mando o gato calar a boca, gosto de me dizer feminista ou esquerdista mas não curto ir em manifestação, aliás, em nenhum lugar que tenha aglomeração de gente;
Pego ranço de algumas pessoas pelos motivos mais idiotas, sinto raiva de quem escreve melhor que eu, às vezes me pego rindo de coisas que eu não deveria, fico achando graça sozinha das coisas que as pessoas postam no instagram achando o máximo, por mais que eu saiba que fazem o mesmo comigo;
Tenho medos e problemas e erro o tempo inteiro e tantas outras coisas que nem sei, mas tudo bem. Tudo bem porque não tenho que ser modelo pra ninguém, não tenho que saber de tudo, não é minha missão de vida ser perfeita se somos afinal todas pessoas em construção e é o monstro quem fica misturando o cimento com a pá.
Tudo bem ter um monstro. E daí que os outros vão se incomodar, vão ficar perturbados, vão achar horroroso? Como se eles também não tivessem seus próprios monstros debaixo do tapete, dentro do armário ou atrás da porta, rá.
Um amigo meu, professor, um dia estava me contando como ele perdeu o medo de falar para muita gente (coisa que tenho pavor).
“Pegue a pessoa mais incrível, mais bonita ou mais intimidadora que você conhece. Agora imagine, como se você fosse dotada de visão de raio-X, o interior dessa pessoa. Imagine que essa pessoa tem um intestino e dentro dele um monte de bosta sendo processada. Cara, isso muda tudo! Porque ninguém que você sabe que é um saco ambulante de merda tem o direito de te julgar.”
Não há idealização ou perfeição que resista à consciência de que estamos todos cheios de merda por dentro. Veja que até eu, enquanto escrevo, estou com a barriga cheia de cocô. Só isso já seria o suficiente para não me tomar como alguém que está acima dos demais, que é melhor ou correta.
E nem poderia; tenho um monstro, afinal.
Ao colocar o monstro pra fora, me sinto protegida. Se eu o abraço, se eu o aceito e não nego sua existência, fica mais difícil alguém usar meu monstro para me ferir, me atacar, me atingir.
Que efeito pode ter alguém que fica atrás da moita só esperando o momento de eu errar para me expor, se eu já tiver exposto tudo?
Há pouco, enquanto eu falava disso aqui em casa, meu namorado deu de ombros e disse que nosso monstro nem sempre vai ser assim tão horripilante, que é tudo uma questão de perspectiva: “o negócio é que a gente se vê de perto demais e no espelho toda imagem é distorcida”. Quer dizer, o que eu acho que é um monstro pode ser algo fofo, adorável, um pouco desajeitado é verdade, mas adorável.
E aí passamos o tempo todo tentando maquiar, esconder ou corrigir algo que nos tornava interessantes, diferentes ou adoravelmente errados. Daí percebo que o monstro pode não ser o pior de nós, mas uma preciosa lição: a de que não podemos ser inteiros se tentarmos ser perfeitos demais.
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Ilustrações de Maurice Sendak, autor dos livros Where the Wild Things Are.