A responsabilidade do artista

Semana passada, feriado de Páscoa, uma amiga me chamou para passar o dia no parque, “aproveitar o feriadão”. Respondi que eu não tenho feriado – mas sábado a gente se vê, claro, por que não.

Eu não tive feriado não porque um chefe me privou dele. Eu não tive feriado não porque fui obrigada. Eu não tive feriado porque eu quis trabalhar.

E eu quis trabalhar porque, naquele momento, eu estava tão envolvida e empolgada escrevendo o texto que enviaria para meus leitores no sábado, que essa era exatamente a minha definição de “aproveitar o feriadão”.

(ou: uma vez nerd, sempre nerd)

É um enorme privilégio não ter chefe nem horários. Mas não ter alguém para controlar meus horários e me dizer o quê ou como devo escrever não significa que eu não tenha compromisso.

E um desses compromissos é enviar uma newsletter todos os sábados.

O Alex Castro publicou em sua newsletter uma carta de agradecimento às pessoas que financiam seu trabalho. Achei tão foda que resolvi compartilhar por aqui na íntegra:

queridas mecenas,

esse texto é só para agradecer. mais uma vez. sempre.

vocês não imaginam o quanto eu valorizo, prezo, respeito o mecenato de vocês.

não acho trivial, não acho comum, não acho ordinário, que pessoas que eu nem conheço me contribuam dinheiro em troca…

bem, de nada, de textos que eu já dei e que já leram de graça.

não quero nunca me acostumar. não quero nunca ser a pessoa que acha normal receber esse tipo de contribuição.

penso no mecenato de vocês como um privilégio e como uma obrigação.

saber que vocês estão aí me faz ser uma pessoa melhor, um artista mais produtivo, um homem menos gastador.

eu penso:

não, não posso chutar o balde, não posso passar o mês só lendo game of thrones, não posso fazer aquela extravagância financeira.

não é para isso que essas 340 mecenas me sustentam.

eu tenho obrigação de ser essa pessoa que elas acham que eu sou.

e, talvez, quem sabe, na prática diária, um dia eu venha a ser.

vocês me ajudam muito, muito mais do que imaginam. (a ajuda financeira é a menor delas.)

e sou grato, muito grato.

O compromisso de Alex com suas pessoas leitoras me inspira. Por isso me identifiquei tanto com essas palavras. “Eu não quero ser a pessoa que acha normal receber esse tipo de contribuição.”

É realmente extraordinário alguém acreditar tanto no seu trabalho a ponto de pagar, voluntariamente, para que ele continue acontecendo. É extraordinário, é lindo, mas também é uma puta responsabilidade.

O esforço que eu invisto no meu trabalho é porque ele já é importante e significativo pra mim. Mas quando o que eu faço passa a ser importante e significativo para outras pessoas, a dimensão dessa responsabilidade fica ainda maior.

Há muito caminho pela frente para eu chegar perto da escritora que quero ser. É minha responsabilidade continuar avançando em direção a ela. E não há nada mais motivador do que saber que alguém confia no meu trabalho a ponto de garantir que eu tenha tempo, dinheiro ou apoio para continuar nessa caminhada.

A responsabilidade está justamente na percepção de que não avanço sozinha.

Amanda Palmer é outra grande inspiração. Em seu livro “The Art of Asking”, ela conta sua trajetória como artista (desde a época em que trabalhava como estátua de rua) e fala de coisas que têm tudo a ver com arte: empatia, generosidade, confiança, conexão, troca.

Uma das coisas mais maravilhosas a respeito desta mulher (além da sua música e de ser casada com o Neil Gaiman ♡) é como ela se entrega aos fãs. E eles devolvem esse amor. Ela diz: “quando você confia nas pessoas abertamente, radicalmente, elas não apenas tomam conta de você, mas se transformam em aliadas, em família”.

Amanda Palmer
Amanda Palmer e os que confiam nela

 

Fotografia: Burns // Flickr Creative Commons

Essa conexão honesta que ela cria com os fãs permitiu que ela conseguisse arrecadar mais de um milhão de dólares pelo Kickstarter para gravar um álbum independente e fazer a turnê com as novas músicas.

Recentemente, ela iniciou um Patreon para seus fãs pagarem uma quantia fixa mensal que vai ajudá-la a produzir mais, melhor e de forma mais constante. Diferente da experiência anterior, ela não tem um produto definido (um álbum, uma turnê), então os fãs estariam financiando a produção artística dela, ou, como ela mesma diz: “coisas”.

No vídeo de apresentação do Patreon ela diz: “eu não sei o que vou fazer primeiro ou que diabos vai acontecer. Mas vai ser maravilhoso. Você só tem que confiar em mim.”

Não é só sobre dinheiro. É sobre uma relação de confiança entre artista e pessoas que curtem sua arte. E a confiança só se sustenta quando há o compromisso.

Fazer arte é uma enorme, tremenda, gigantesca, baita responsabilidade.

Mas uma responsabilidade baseada em uma troca, não numa relação tirânica de exigências e cobranças como fazem muitos chefes.

Amanda Palmer explicou a diferença:

Não é como se o dinheiro dos fãs fosse uma “mesada”, com fios de intromissão e críticas presos a ela. É um presente, em forma de dinheiro, em troca do presente dela, em forma de música.

Amanda recebe muitas críticas por “mendigar” para seu fãs, porque 2015 e ainda se rejeita muito a ideia de que um artista precise de dinheiro. “Vai trabalhar!”, alguns gritam; e ela apenas fica muito brava: “é justamente isso que estou fazendo!”.

Isso só me lembra Tom Zé e o climão que rolou com seus “fãs” quando ele fez um freela (não tá fácil pra ninguém) narrando um comercial da Coca-Cola há algum tempo. Os “fãs” acusaram Tom Zé de vendido, xingaram, chiaram tanto que ele resolveu doar toda a grana para um instituto de música.

Em resposta, Tom Zé lançou o álbum “Tribunal de Feicebuqui” (que aliás é maravilhoso), transformando toda essa situação em arte porque ele é foda, fazer o quê?

Na primeira música, um trecho que diz muito:

Bruxo, descobrimos seu truque

Defenda-se já

No Tribunal do Feicebuqui

A súplica: que é que custava morrer de fome só pra fazer música?

Em “Zé a Zero”, Tom Zé canta que fazer música é colocar a canção numa garrafa e esperar chegar no coração de alguém; mas acaba navegando devagar, pela contramão, porque é “indie e dependente”. Porque ser independente significa justamente isso: depender das pessoas que acreditam no seu trabalho.

O problema é quem acredita que o compromisso do artista é morrer de fome e passar aperto só porque os “fãs” acham bonito.

É muito cruel exigir que um artista viva na pobreza para ser um “artista puro”. Além de ser uma burrice: se a pessoa realmente curte o trabalho do cara, deveria ficar feliz se ele consegue condições melhores para se sustentar, porque significa que ele será mais produtivo, criativo, que vai poder se comprometer com um trabalho cada vez melhor.

E a vontade de que esse trabalho seja feito é, afinal, o que artista e fã têm mais em comum. Que a arte possa viver, respirar, tocar alguém.

Então a responsabilidade do artista já não é apenas tocar, escrever, compor, criar, desenhar; mas trabalhar para tornar a arte maior do que ele próprio.

Torná-la tão grande que possa ficar enorme, gigantesca, tremenda – do tamanho das pessoas que acreditam nela.

Fotografia da capa: Laurence Barnes // Flickr Creative Commons