Não é todo mundo que sabe, mas além de ser mulher, o que é bem evidente apesar do meu cabelo curto e da minha recusa em me encaixar nos padrões de “feminilidade”, eu também já fui publicitária. Não só trabalhei em agências, como me formei em Publicidade e Propaganda.
Talvez isso me torne suficientemente habilitada para falar com profundidade sobre um tema entalado na garganta há tempos, mas que achei difícil de segurar especialmente depois de ler esta excelente reportagem da Agência Pública: “O machismo é a regra da casa”.
Nesta matéria, publicitárias denunciam abusos e situações que me soaram tristemente familiares e que explicam, em parte, porque as agências são essa fabriquinha de anúncios machistas.
Thaís Fabris, entrevistada pela Pública, tocou no nervo da questão: “Antes de falarmos sobre publicidade machista, temos que falar sobre machismo na publicidade”.
Não é preciso já ter passado por agências para estar devidamente familiarizado com o contexto que apresento aqui. Quem já assistiu Mad Men, seriado da AMC sobre o mercado publicitário no cenário nova-iorquino da década de 60, já terá uma boa ideia do que significa ser mulher nesse meio.
“Mad Men” é como eram conhecidos os homens da Madison Avenue, onde funcionavam as maiores agências americanas. Repare o foco em “homens”. Desde suas origens, as agências de publicidade são um ambiente majoritariamente masculino e branco.
Nos anos 60, as mulheres já estavam se inserindo no mercado de trabalho, ainda que em cargos menores, mal remunerados, geralmente como assistentes e secretárias. O glamour, o dinheiro, os trabalhos que rendiam prêmios e reconhecimento pertenciam aos homens – o “gênio” criativo Don Draper era um deles.
Apesar de Don Draper ser o protagonista da série, não acho que a história seja sobre sua trajetória. No meu ponto de vista, e acho que o seriado fica muito mais interessante dessa perspectiva, a história é sobre duas mulheres – Joan e Peggy – e como elas constroem suas carreiras em um ambiente tão machista.
Joan é uma mulher muito inteligente que começa como secretária e, ao decorrer das temporadas, vai demonstrando seu potencial para se tornar uma executiva. Apesar de toda sua experiência e talento, ela é em muitas ocasiões tirada de tempo e vista pelos outros apenas como uma “gostosona”.
Peggy é uma jovem que também começa como secretária, mas já aspirando um cargo no departamento de criação; seu desejo é seguir os passos de Don Draper e se tornar uma grande redatora. Apesar de Draper a contratar como redatora, as coisas para Peggy não ficam fáceis. Ela passa por várias dificuldades para provar que seu trabalho é tão bom ou melhor do que o dos colegas homens, que eventualmente a humilham por causa de seu gênero e de sua aparência.
Tirando a elegância nos figurinos e os diálogos inteligentes, as situações mostradas em Mad Men são exatamente as mesmas que podem ser observadas hoje em dia, nas agências da “vida real”.
Há muitas Peggys e Joans tentando se virar da melhor forma possível em um ambiente bastante hostil para as mulheres – e talvez seja justamente essa uma das coisas que o seriado tenta apontar: muitas agências parecem ter ficado paradas na década de 60.
Alguns podem argumentar dizendo que há muitas mulheres trabalhando em agências de publicidade. Que não há diferença de salários. Que não há discriminação de gênero. Deve ser desagradável ser lembrado que não é bem assim, ainda mais por uma ex-publicitária que se atreve a apontar os problemas de uma profissão e de um mercado que alguns consideram coisa sagrada. Mas é exatamente o que vou fazer.
Há uma evidente desigualdade de gênero dentro das agências, que reproduzem, como muitos outros lugares, a desigualdade observada na sociedade. A começar pelo seguinte: a maioria das mulheres que trabalham em agências estão no departamento de atendimento, onde são julgadas primariamente pela aparência; afinal, precisam ser bonitonas para “seduzir” os clientes.
Ser bonita, no caso, não oferece nenhuma vantagem a elas. Pelo contrário, faz com que elas sejam alvo de assédio e piadinhas dos próprios colegas. Como Joan, são vistas como rostinhos bonitos (ou bundas) e nada mais.
A criação, que é o cérebro e o coração das agências, de onde saem as grandes campanhas, é um clube do bolinha; um espaço dominado por homens brancos, desde a base até o topo da pirâmide hierárquica. Em várias agências por onde passei, eu fui a única mulher na criação. Em outras, eu até tinha companhia, mas éramos minoria.
Por falar em minoria, durante os anos em que trabalhei com propaganda, tive dois colegas negros na criação. É pouco, absurdamente pouco, mas é mais do que o número de colegas negras de criação que já tive.
É triste e doloroso observar isso, mas nos lugares por onde passei era mais provável encontrar uma mulher negra trabalhando no departamento de criação se ela estivesse fazendo faxina. O racismo estrutural e invisível tem funcionado muito bem para manter as pessoas negras longe dos trabalhos com melhores remuneração e visibilidade.
Agora, não pense que as poucas (geralmente brancas) que conseguiam trabalhar na criação estavam de igual para igual com os caras. Não estávamos.
Lembro da única vez em que tive a oportunidade de trabalhar com uma diretora de arte (diretor de arte, ou D.A. para os íntimos, é o profissional responsável pela parte visual da comunicação, enquanto o redator é aquele que cuida dos textos; não confundir com diretor de criação, que é o chefe do departamento).
Os comentários que eu ouvia quando ela saía da sala eram de embrulhar o estômago. O diretor de criação, de quem se espera atitude mais madura por ser o chefe, era quem puxava os comentários com os criativos que sentavam mais próximos da mesa dele; faziam comentários horrorosos sobre o corpo dela, ora falando que ela era gostosa, ora criticando as “dobrinhas da barriga”. Ouvi também ele dizer que onde ele sentava era o melhor lugar para olhar para as pernas dela quando ela usava saia.
Eu ia ouvindo tudo aquilo calada, fazendo exatamente o que se espera de uma mulher nessa situação: não expressar solidariedade pela colega sob o risco de perder o emprego ou se tornar o alvo. Tentava me concentrar no trabalho à minha frente, num esforço de não pensar no tipo de comentário que eles faziam quando eu saía da sala.
Era preciso levar as “brincadeiras” na esportiva. Funcionava mais ou menos como uma prova de resistência do Big Brother: se você queria manter seu espaço na criação, precisava aguentar com bom humor as “piadas” dos colegas “irreverentes” que, pô, só estavam mostrando que te viam como um “cara”, como “um deles” ao te dirigir as piores ofensas. Era preciso mostrar que você não se importava ou uma condição de trabalho que já era difícil se tornaria insuportável.
Uma vez, em uma entrevista de emprego, o diretor de criação disse que estava querendo contratar mais mulheres para a equipe. “Ah, que bacana”, eu disse, feliz por entender que eu era bem-vinda ali, até ele dizer que queria contratar mulheres “como eu”, que já estivessem acostumadas ao clima “zueiro” da criação. Porque claro, a preocupação dele era em manter um ambiente propício para piadas, e não para as mulheres. Prioridades, né.
Em outra agência, os colegas estavam comentando sobre como devia ser um ambiente de trabalho só com mulheres, obviamente para zoar as moças do atendimento, sugerindo que devia ser um inferno, cheio de intrigas e competições (reforçando aquele estereótipo mentiroso de que mulheres são sempre inimigas). Como se um ambiente de trabalho só com homens fosse a coisa mais saudável do mundo. Dica: não era.
Sobre diferenças salariais: nas agências, especialmente na criação, os profissionais costumam ser remunerados de acordo com a sua experiência e com o cargo que ocupam. Há basicamente três níveis que são, em ordem crescente: Júnior, Pleno e Sênior (sem contar Estagiário, que fica logo abaixo de Júnior).
Pode até ser que um homem e uma mulher, por exemplo, na categoria Pleno, recebam o mesmo salário. Mas à medida em que escalamos a pirâmide hierárquica da agência, vamos encontrar menos mulheres e mais homens. A maioria dos colegas Sêniores que tive (ou seja, o pessoal da criação que ganhava mais, depois, obviamente dos diretores de criação) eram homens. A imensa maioria dos diretores de criação das agências onde trabalhei também eram homens.
“Ah, mas essa foi a sua experiência”. Certamente. Mas não está muito distante da realidade: apenas 3 por cento dos diretores de criação no mundo inteiro são mulheres. Apenas 10 por cento dos criativos nas agências brasileiras são mulheres.
Outro fator que contribui para que tão poucas mulheres sejam vistas no topo é que, quando estão na base, elas são empurradas para os trabalhos com menos visibilidade, os que ninguém quer fazer, coisas do dia a dia. Ouço histórias de amigas que dizem receber os piores jobs da agência, junto com a desculpa “precisamos de um toque feminino para este trabalho!”. Numa carreira onde o que importa é o seu portfólio, isso faz muita diferença.
Mas é claro, vamos fingir que é uma questão de meritocracia, que as mulheres não conseguem porque não são boas, e não porque são sobrecarregadas com o trabalho pesado enquanto têm o psicológico minado por piadas e humilhações machistas. Peggy Olson que o diga.
Retomando este tema hoje, tentei me lembrar das mulheres que eram diretoras de criação na época em que trabalhei como redatora; elas não trabalham mais em agência. Muitas colegas daquela época também abandonaram a vida de agência. Ouço relatos de outras que não aguentam mais, que querem sair, que estão em busca de outras carreiras. Mais do que dificultar a entrada de mulheres, o meio publicitário facilita a saída delas.
São poucos os que sobrevivem e prosperam dentro desse ambiente tóxico.
Parte disso também se deve a uma mentalidade perversa que inclusive serve como mecanismo de defesa para ocasiões como esta, em que críticas são feitas ao meio publicitário.
Esta mentalidade é plantada na cabeça dos jovens publicitários desde cedo em suas carreiras: a ideia de que você deve amar a publicidade se quiser crescer no mercado. Aquilo passa a ser a sua vida – ou a coisa mais importante nela.
Importante dizer que não há nada de errado em amar o que se faz e se esforçar para fazê-lo bem; o problema é que isso costuma adquirir dimensões meio doentias entre os publicitários.
É comum que sintam orgulho de serem os primeiros a chegar e os últimos a sair; acharem lindo virar noites na agência ou trabalhar em fins de semana e feriados; ou acharem que é uma puta vantagem a agência bancar a pizza que eles comem nas madrugadas de trabalho, como se suas horas extras valessem umas fatias de calabresa meio murchas.
Claro que essa ideia muito convém aos donos de agência, que assim podem explorar ao máximo o trabalho dos criativos – e estes passam a enxergar o trabalho como suas vidas. E de fato as coisas se confundem: passam tanto tempo na agência que suas vidas orbitam ao redor da propaganda.
Por isso alguns ficam tão incomodados quando se fala mal da publicidade. É quase como uma entidade sagrada. Então, se alguém reclama de uma propaganda ou a acusam de preconceituosa, alguns rebatem “ah, essas pessoas não entenderam!” ou clamam pela Santa Liberdade de Expressão, ou ainda se lamentam pelo Terror do Politicamente Correto. Porque o grave não é fazer piada com minorias para vender produtos; ofensa mesmo é não ver graça num anúncio de trinta segundos de puro machismo.
Os anticorpos desse mecanismo de defesa são tão fortes que o primeiro impulso ao ouvir esse tipo de crítica é rebater com “mas olha esse anúncio feminista que fizeram lá na gringa” ou “mas nem todos os publicitários são assim!”, num eterno estado de negação de que tem muita coisa errada no fantástico mundo da propaganda.
Esse apego ao mercado e à profissão faz com que muitos vivam dentro de uma bolha, onde existem eles, os criativos, e as pessoas que veem os anúncios maravilhosos que eles criam. É comum dentro de agência chamar pessoas de tudo, menos de pessoas: consumidores, público-alvo, até usuários. Isso acaba criando a ilusão de que eles estão de alguma forma acima das pessoas comuns. Que eles são capazes de alcançar o entendimento de grandes ideias que os meros mortais nunca alcançarão.
É incômodo lembrar que publicitários também são consumidores, também são “público”, também são pessoas. Eles não estão fora ou por cima da sociedade, como alguns gostam de pensar. Eles são a sociedade. E se seu trabalho não consegue refletir outra coisa que não o desprezo que eles mesmos sentem pelas mulheres, é exatamente porque eles são como qualquer pessoa imersa neste sistema machista.
Então é claro que continuamos a ver tanta propaganda tratando mulher como idiota, secundária ou objeto sexual: porque é exatamente esse o tratamento que os caras atrás do volante da publicidade dispensam às mulheres, inclusive suas colegas de trabalho.
O mais curioso a respeito disso é que publicitários são conhecidos como profissionais descolados, que antecipam tendências, super modernos, “fora da caixinha”. Mas parecem incapazes de perceber que as coisas estão mudando, que o mundo inteiro está discutindo gênero, e permanecem reproduzindo comportamentos e discursos antiquados. Falam o tempo inteiro em inovar, em buscar novas ideias, enquanto acham “geniais” associações machistas e racistas mais velhas que minha vovozinha.
O estado de descolamento da realidade é tão profundo que muitos sequer enxergam que eles não são o Don Draper; quanto mais enxergar mulheres como seres humanos. É difícil olhar para o lado e ter um pouco de empatia quando só se pensa em perseguir a “grande ideia”.
Conheço pessoas incríveis que atuaram ou ainda atuam em publicidade e tornam esse meio um tanto menos inóspito. São profissionais criativos no mais puro significado da palavra, ou seja, que conseguem pensar em ideias e soluções que não precisem apelar para preconceitos e estereótipos ofensivos. Porque fazer propaganda machista não tem nada de inovador. É zona de conforto. É coisa velha.
Infelizmente, o mercado costuma dar mais espaço e fazer persistir na carreira aqueles com mentalidade compatível com esse sistema cáustico e opressivo. Até aí, nada de novo no front: isso pode ser observado nas mais diversas camadas da sociedade.
Mas quero acreditar que as coisas estejam mudando. Quero que minhas amigas publicitárias não precisem buscar outro emprego para poderem trabalhar em paz. Quero que elas possam trabalhar num ambiente saudável, mais aberto à diversidade. Quero que elas tenham mais espaço, e que o meio publicitário deixe de ser blindado contra críticas para que assim possa evoluir e crescer – e, consequentemente, que isso se reflita em propagandas nas quais as mulheres se vejam melhor representadas.
As Peggys e Joans das agências brasileiras já carregam em si o componente principal para essa revolução: é a presença delas no mercado que pode arrancar a publicidade dessa mentalidade atrasada dos anos 60. You go, girls.