Pessoas ruins

Vivemos tempos difíceis. São tempos favoráveis para a violência e a crueldade, com ódio escorrendo pelas calçadas e a intolerância marchando pelas ruas, ignorando todos os sinais vermelhos.

Mas esse ódio não é uma entidade incorpórea, que flutua acima de nós, como um espírito com vontade própria. São as pessoas. Gente de carne e osso como eu e você, que também se consideram pessoas de bem, super bacanas, caminhando por aí com um buraco enorme no peito onde devia haver um pouco de empatia.

Percebo que vai muito além de discordâncias ideológicas, de princípios “morais”, de falta de informação, de inocência ou ignorância, ou até de certezas demais. Às vezes não tem outra explicação: são pessoas ruins. Há coisas que elas dizem e fazem que não é possível que não vejam o quanto estão impregnadas de maldade. Um mal que reside na recusa absoluta de reconhecer a humanidade e a existência do outro – e na ideia de que tudo vale para silenciá-lo.

Esses dias descobri um texto da Eliane Brum em que ela lança uma pergunta fundamental para começar a entender essa história: “em que momento a opinião ou a ação ou as escolhas do outro, da qual divergimos, se transforma numa impossibilidade de suportar que o outro exista?”

Com a internet, descobrimos a extensão da cloaca humana, diz Eliane Brum. Eu digo mais: fomos expostos ao lar abissal de Cthulhu que habita o interior de cada um de nós.

“Descobrimos, por exemplo, que aquele vizinho simpático com quem trocávamos amenidades bem educadas no elevador defende o linchamento de homossexuais. E que mesmo os mais comedidos são capazes de exercer sua crueldade e travesti-la de liberdade de expressão. Nas postagens e comentários das redes sociais, seus autores deixam claro o orgulho do seu ódio e muitas vezes também da sua ignorância. Com frequência reivindicam uma condição de ‘cidadãos de bem’ como justificativa para cometer todo o tipo de maldade, assim como para exercer com desenvoltura seu racismo, sua coleção de preconceitos e sua abissal intolerância com qualquer diferença.”

É com terror que encaramos essa “novidade”, todo esse ódio e crueldade que encontrou terreno fértil na internet e que desabrocha também na vida fora dela, infectando o ar com seu cheiro podre do mais puro suco de lixo. Mas a verdade é que isso sempre esteve aqui. Eliane lembra:

“A sociedade brasileira, assim como outras, mas da sua forma particular, sempre foi atravessada pela violência. Fundada na eliminação do outro, primeiro dos povos indígenas, depois dos negros escravizados, sua base foi o esvaziamento do diferente como pessoa, e seus ecos continuam fortes.”

Destaco alguns trechos, mas gostaria que você o lesse inteiro, quando tiver um pouco de tempo (o texto é longo). Me deu muito o que pensar.

Uma das coisas que pude entender é que essas pessoas, as que manifestam o lado mais sombrio da humanidade, estão certas. Assustadoramente certas. Calma, explico.

Esta semana assisti ao filme “Nightcrawler”, em português “O Abutre” (tem na Netflix). É a história de um cara bem mau caráter que começa a trabalhar como cinegrafista freelancer e a vender imagens de tragédias (assaltos, acidentes, assassinatos) para as emissoras de TV locais.

Esse filme me deu mal estar físico, de verdade. Não porque o filme seja ruim; ele é excelente. E justamente por ser tão bom ele me jogou dentro da história e me fez passar mal de raiva com o protagonista, interpretado pelo Jake Gyllenhaall. Meu estado emocional era tal quando terminei de ver o filme que, conversando no Twitter com o leitor Mauro, chamei o Jake de Ryan Gosling, de tão nervosa que eu estava. Vai vendo.

nightcrawler1

 

Louis Bloom não é flor que se cheire, e isso a gente entende já nas primeiras cenas do filme. Ele rouba cercas de arame e tampas de bueiro para vender depois e descolar algum dinheiro. O jeito como ele sorri, negocia e conversa, mesmo em situações onde ele é confrontado com o fato de ser um contraventor, mostra que há algo de errado naquela cabecinha.

Mais do que um trambiqueiro e oportunista, o cara é um psicopata. Isso vai ficando mais evidente depois que ele aprende a ganhar dinheiro vendendo vídeos de tragédias para a TV.

Com o tempo ele fica bom nisso: sabe quais ocorrências da polícia vale mais a pena cobrir, consegue chegar aos locais rapidamente (é importante chegar antes dos cinegrafistas concorrentes), e consegue ângulos muito mais explícitos das vítimas.

Esse acaba sendo o diferencial de Lou. Ele tem a cara de pau de se meter nas cenas de crime ou de acidente para pegar, de forma mais escancarada possível, o sangue ainda jorrando do corpo das vítimas. Não é por acaso que a editora de um telejornal (Rene Russo) fica exultante ao ver o material de Lou. “É isso que dá audiência! É isso que o telespectador quer ver!”

O lance é que Lou começa a fazer de tudo por uma “boa” filmagem. Há um momento em que ele arrasta o corpo da vítima de um acidente, antes do socorro chegar, mas não para ajudar a pessoa; e sim para conseguir um ângulo mais dramático.

Ele presencia um assassinato brutal, mas vê naqueles corpos estirados apenas a oportunidade de pedir uma pequena fortuna pelas imagens. Ele consegue filmar os assassinos de um crime, mas em vez de entregar o material para a polícia, arma uma situação onde a captura dos criminosos também rendesse imagens valiosas.

São muitas as ocasiões onde a psicopatia de Lou fica evidente: seja ameaçando seus concorrentes com sorrisos e calma, ou criando situações para conseguir as melhores imagens, ainda que à custa de vidas de outras pessoas. Porque é exatamente o que um psicopata faria se tivesse nas mãos, em vez de uma pistola, uma câmera.

O que mais me aterrorizou no filme foi ver o quanto ele era perfeito para atuar nesse ramo. Não é apenas sobre Lou ser um psicopata sem escrúpulos; mas de haver todo um sistema que o beneficia, que o acolhe e o paga justamente pelo que ele é e pelo que ele faz. Nesse meio jornalístico que se alimenta de tragédia & sangue, Lou está no melhor lugar que ele poderia estar para se dar bem profissionalmente – justamente por ser alguém moralmente desfigurado.

Quando falamos em psicopatas, geralmente tendemos a pensar em algo muito distante, em casos isolados, em serial killers. Mas não é preciso ser um assassino em série para ser um psicopata – e isso o filme “Nightcrawler” mostra muito bem.

O mal está perto, muito perto. Está por todo lado. Está nos nossos vizinhos, está naquela senhorinha passando na rua, está no professor, está no pai de família, está no garotinho da terceira série, está em mim, está em você.

O pesquisador e psicólogo Philip Zimbardo conta nesta palestra um experimento que ele fez uma vez com estudantes voluntários, perfeitamente normais e saudáveis, simulando um ambiente de prisão. Ele os dividiu em dois grupos: alguns fariam o papel de prisioneiros, outros o de guardas.

Os rapazes no papel de prisioneiros passaram a ser identificados como números. E quando você é um número, você não é mais uma pessoa. Os rapazes no papel de guarda foram revestidos com símbolos de poder e anonimato.

No primeiro ou no segundo dia, os prisioneiros fizeram uma rebelião e os guardas foram instruídos a colocá-los de volta em seus devidos lugares – sem, é claro, usar qualquer tipo de violência física.

Isso não impediu que os guardas começassem a submeter os prisioneiros às mais variadas violências psicológicas e cruéis humilhações. Eles os colocavam nus para cantar “parabéns pra você” durante horas, colocavam os prisioneiros para simular sexo anal um com o outro, limpar as privadas com as próprias mãos, entre outras tarefas degradantes.

O estudo teve que ser interrompido no sexto dia. Seis dias e a coisa já havia saído completamente de controle. Cinco dos rapazes entraram em colapso nervoso.

The Stanford Prison Experiment virou filme que já estreou este ano.
The Stanford Prison Experiment virou filme que já estreou este ano.

 

Dá pra estremecer ao pensar o que teria acontecido em mais uma semana se os rapazes no papel de guardas continuassem a ser estimulados nesse tipo de comportamento. E repito: eram todos garotos normais, de um lado e de outro. Mas aqueles que receberam algum poder ficaram totalmente corrompidos.

“Essa linha entre o bem e o mal, que as pessoas gostam de pensar que é fixa e impermeável – com elas, as boas, de um lado e as outras, as más, do outro eu sabia que essa linha era móvel e era permeável. Pessoas boas podem ser seduzidas a cruzar essa linha e, em algumas circunstâncias, pessoas ruins podem se recuperar.”

Philip também aponta para algo muito interessante: nas culturas em que os soldados mudam sua aparência (seja fazendo pinturas corporais, usando máscaras ou se uniformizando), eles tendem a ser muito mais violentos com suas vítimas. De 23 culturas analisadas, em oito delas os soldados não mudavam sua aparência – entre elas, em apenas uma eles matavam, torturavam e mutilavam. Nas quinze restantes, onde os soldados mudavam sua aparência de alguma forma, em 90 por cento delas os soldados matavam, torturavam e mutilavam.

Esse é o poder do anonimato. As pessoas se sentem mais confortáveis para serem cruéis e abusivas.

É como no experimento de Milgram: do outro lado de uma sala, recebendo ordens de uma autoridade, pessoas comuns, pessoas “de bem”, achavam perfeitamente aceitável eletrocutar outra pessoa até a morte.

De volta ao texto da Eliane Brum:

“[A filósofa Hannah] Arendt, para quem não lembra, alcançou ‘a banalidade do mal’ ao testemunhar o julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, e perceber que ele não era um monstro com um cérebro deformado, nem demonstrava um ódio pessoal e profundo pelos judeus, nem tampouco se dilacerava em questões de bem e de mal. Eichmann era um homem decepcionantemente comezinho que acreditava apenas ter seguido as regras do Estado e obedecido à lei vigente ao desempenhar seu papel no assassinato de milhões de seres humanos. Eichmann seria só mais um burocrata cumprindo ordens que não lhe ocorreu questionar. A banalidade do mal se instala na ausência do pensamento.”

Então lembra quando falei lá em cima que as pessoas ruins é que estão certas? Parece loucura dizer isso, mas pense comigo. As pessoas ruins estão “certas” porque estão perfeitamente ajustadas a uma sociedade doente.

Elas apenas seguem o script. Como um Lou, elas veem no cenário ao seu redor as condições ideais para ser, sem medo, pessoas mesquinhas, insensíveis e cruéis. Como um Eichmann ou como um guarda numa prisão experimental, elas olham para o mundo que as cerca e se sentem confortáveis para violentar as pessoas que esse sistema despiu de humanidade.

É Philip quem diz:

“O poder está no sistema. O sistema cria a situação que corrompe o indivíduo. O sistema está no arcabouço jurídico, político, econômico e cultural. Então se você quiser mudar uma pessoa, você tem que mudar a situação. Se você quer mudar a situação, você tem que saber onde o poder está: no sistema”.

As pessoas são ruins quando ouvem uma gritaria e se sentem encorajadas a engrossar o coro; seja para gritar “bandido bom é bandido morto”, “tem mais é que ser estuprada mesmo”, “intervenção militar já”, entre outras barbáries que são gritadas para não ter que ouvir a voz ou a respiração de gente pobre, de negros, de índios, de mulheres, de homossexuais, do outro. Elas sabem que aquelas palavras foram afiadas para ferir alguém. Mas elas não se importam. Já foram seduzidas pela maldade, pelo prazer de apertar o botão que vai dar choque em alguém. E a coisa está tão naturalizada que elas sequer veem aquilo como maldade. É como as coisas são. É só zueira. É só minha opinião.

A maldade a um botão de distância: num equipamento de choque ou nas redes sociais
A maldade a um botão de distância: num equipamento de choque ou nas redes sociais

 

Então as pessoas ruins estão certas porque as regras funcionam justamente para tirar o pior delas.

Errado é aquele que, mesmo com todas as condições a favor de sua maldade, escolhe não agredir a outra pessoa. Errado é quem se esforça para não cruzar a linha.

Porque há, aqui dentro, alguém violento e cruel só esperando a oportunidade de mostrar os dentes, mesmo nas situações mais banais, mesmo nas coisas mínimas.

Se o certo é, na posse de qualquer quantidade de poder, usá-lo para ofender, humilhar e destruir alguém, eu não quero estar certa. Você quer?

Porque mais do que uma batalha contra pessoas que não estão nem aí para as outras, a luta que a gente precisa ter todos os dias é olhar para o maldito botão de choque, bem à nossa frente, tão acessível, e decidir não usá-lo. É saber que, ao olhar para o abismo, o abismo olha de volta pra gente.

Vamos conseguir, só por hoje, não cruzar essa linha?

Publicado originalmente na edição #58 de Bobagens Imperdíveis, minha newsletter semanal e gratuita. Assine para receber textos como este no seu e-mail todos os sábados, com exclusividade e antecedência.