Poucos assuntos são mais desagradáveis do que falar de ex. No entanto, algumas circunstâncias colocam a gente de fuça para o passado, seja para nos envolver numa vibe “ai, como era bom” ou nos jogar no sentido oposto, com aquele maravilhoso sentimento de “ainda bem que tudo acabou”. O pior de tudo é transitar na área cinzenta; saber que hoje você está melhor e ainda assim sentir falta de várias coisas.
Foi o que aconteceu essa semana, quando reencontrei com a minha ex. Não sou de ficar falando dos meus relacionamentos pra geral, mas às vezes a gente precisa falar para superar, certo? E afinal foi quase uma vida (a minha pelo menos) juntas.
Eu era apaixonada por Brasília. A gente se dava super bem, a gente combinava. Era do tamanho certo pra mim, sabe? Acontece que faz uns dois anos que terminamos, algo meio abrupto e, pra falar a verdade, nenhuma das duas queria. Mas assim foi.
Fui visitá-la esses dias e folguei em saber que ela ficou bem depois do término. É engraçado a gente rever alguém com quem a gente deixou de se relacionar, sempre rola uma vontade de mostrar, na superfície, o quanto sua vida vai bem, obrigada. Vira uma competição velada de “The Quem Se Deu Melhor Show” – enquanto as verdades inconvenientes aparecem só para quem frequenta os bastidores.
Ia dizendo que ela parecia bem: a cara renovada, as obras que na minha época a deixavam mal-arrumada já finalizadas e funcionando direitinho, até os ônibus que ela usava tinham mudado, estava mais moderna, verdinha, até úmida!
Ela me sorria, a aparência saudável e satisfeita em me rever, mas algo nela me incomodava. Algo que ela sempre foi, mas que eu não fui capaz de reparar ou sentir quando estávamos juntas. E como eu podia achar aquilo normal?
Agora era tão evidente: o quanto ela é distante, até superficial. Com ela, são longos minutos dentro do carro em um silêncio constrangedor, uma falta de assunto, olhar pra fora e só um grande vazio preenchido de verde, distâncias gigantes, mesmo em percursos banais. Tantos hiatos silenciosos e eu achava que era a personalidade dela, normal, as coisas são assim; mas o tempo todo era uma demonstração de quão pouca consideração ela tem por mim (e talvez ela seja assim com todos!). Porque manter seu estilo é mais importante que se aproximar das pessoas.
A superficialidade também me saltou aos olhos. Não tem um quê de psicopatia alguém que não tem altos e baixos? Brasília é a timeline daquela pessoa que só posta o quanto está feliz, fotos no clube, champanhe, céu azul, só momentos bons – e eu hein, tenho medo disso. Uma timeline plana, uma vida de uma nota só. Ela é igual todos os dias, igual para onde quer que se olhe. Não importa o ângulo: igual.
Brasília é essa moça que posa de moderna mas é tão asséptica quanto aquela sua tia com mania de limpeza. Obcecada demais com a perfeição, em se manter sempre na mesma forma para a qual foi planejada desde que nasceu. Mas fia, as coisas mudam, as coisas envelhecem. Deixa estar. Mas não: ela continua nesse esforço de manter-se sempre a mesma porque sabe que é isso que a deixa tão bonita, tão atraente. E realmente, tem quem goste, cada um com seu charme. Mas, na real, acho que ela superestima demais suas curvas.
Eu meio que já sabia disso, mas talvez eu só venha confirmar isso hoje porque não estou mais com ela: o negócio é que Brasília vive de aparências. Por isso não consegui sustentar por muito tempo a crença de que, por trás daquele sorriso de boas vindas que ela me estendeu para dizer que estava tudo bem, estava alguém que não tinha mudado, alguém que continuava cheia de neuras e de problemas.
Essa personalidade distante fez dela alguém solitária, no final das contas. Estranhei andar pelos seus pontos mais movimentados e quase não ver gente (também porque fiquei mal acostumada esse tempo que ficamos separadas). Calçadas tão largas e tão vazias – nem feriado era. A W3-Sul, um detalhe do seu corpo que me fazia sentir tão em casa, comparecia sempre, me pareceu decadente, até triste. Abandonada. Não quis sentir pena dela, acho que Brasília é altiva demais para merecer pena; quis acreditar que minha tristeza era nostalgia.
Porque ela é complicada sim, como dizem quem vem de fora e reclama das dificuldades de lidar com ela; mas indo mais fundo com a convivência, sei que há muita coisa boa a respeito dela. É que de ex, você sabe, geralmente só fica rancor, implicâncias e a vontade de sentir pena – apenas para se sentir um cadim superior. É preciso um pouco mais de esforço para lembrar do que nos mantinha apaixonadas.
Se por um lado ela é distante, por outro se abre para quem se decifra seus códigos; me sentia íntima, tão dela, quando ela não precisava dizer muito – mais do que siglas – para que eu a entendesse. Piadas internas. Um vocabulário todo próprio, que parece ser uma coisa, mas significa outra: pardal, camelo, zebrinha, buraco do tatu, tesourinha, bloco, baú, balão.
E tão bonitinho ela se achar grande, urbaníssima, e ter aquele jeitinho de menina de interior. Poder andar no centro e me sentir num parque. Poder sentar no pilotis de um prédio – qualquer prédio – e curtir o pós-almoço preguiçosamente ao som da sinfonia de cigarras e o vento batendo nas árvores. O andar lento de seus habitantes, até o metrô vai sem pressa sobre os trilhos. Passeios.
Ah, e a pamonha que ela faz. Sinto tanta saudade. Não é a melhor do mundo, mas ela faz muito bem; aprendeu com a tia goiana. Quando fui visitá-la, ela fez questão de me servir uma, e capaz de ter sentido prazer ao ver, pelos meus olhos brilhantes e boca cheia de saliva, que a outra não me faz pamonhas tão boas.
A outra. Ela tinha que tocar no assunto. Quis saber como eu estava arranjada com São Paulo – e eu tentando não comparar, porque esse é um caminho perigoso para seguir. Pra quê ficar comparando o que é notoriamente diferente, como se fosse possível – ou justo – eleger melhores e piores. Contei como estavam as coisas com a atual, falei um pouco de como ela era (complicada, à sua própria maneira) e das coisas boas que eu estava vivendo com ela.
Deve ter batido um recalque, porque ela comparou São Paulo a uma mulher com maquiagem borrada. Seca, suja, barraqueira, agressiva. Tão sem tempo que sempre desarrumada. Às vezes com um cheiro desagradável e nossa, ela é velha demais para você, ela me disse. Não existe amor em SP, ela cantarolou fazendo a sarcástica, como se existisse amor nela também. Gata, não: esse papel de ciumenta não lhe cai bem.
Volta pra mim. Custava a ela dizer isso, mas em todos os seus gestos a presença sutil desse apelo. Não porque sentisse minha falta, já que mostrou com clareza que estava vivendo muito bem sem mim; mas porque queria se sentir amada, desejada (e quem nunca, né?). Queria com isso ter a satisfação de saber que ainda exercia algum domínio sobre mim.
Este é aquele momento crítico em que a gente se sente tentada a ter uma recaída e o arrependimento que vem depois (quase sempre) é batata. As malditas lembranças de uma vida juntas sempre nos puxam para querer sentir aquele gostinho de novo – e mesmo a gente sabendo que é arsênico, vem a vontade de provar. Burrice, puta burrice. Quando a gente vê, está enroscada no mesmo tipo de cilada, nos mesmos problemas de sempre e só aí a gente se dá conta “ah, foi por isso que a gente não deu certo”.
Bem, não vou dizer que fui forte. Dormi com ela algumas noites, mas não passou disso. Sequer passamos por algum tipo de revival romântico, porque as diferenças e conflitos entre nós não deixaram. Foi um encontro de desencontro: ali soube que a gente não se encaixava mesmo, que eu não tinha mais lugar junto a ela.
Já diria um filósofo contemporâneo: “não precisa sofrer para saber o que é melhor pra você”.
Não rola, Brasília, não rola. Dei adeus para uma cara emburrada, ela muito frustrada porque as memórias que eu tinha com ela não eram o suficiente para me fazer ficar. “O que ela tem que eu não tenho?” De novo as comparações, ela não superaria tão fácil o fato de alguém largá-la para ficar com São Paulo (“logo SP! Absurdo! Se fosse pra ficar com o Rio, eu entenderia! Mas SP, sabe”).
E eu, que não estava nem um pouco a fim de seguir pelo caminho das comparações e nutrir qualquer tipo de competitividade entre as duas, resolvi ser bastante franca com Brasília – e colocá-la definitivamente na posição de ex: porque São Paulo, gata, pode não ser perfeita; mas pelo menos ela sabe que não será a única nem a última.
A vida é deixar um rastro de ex por onde se passa.
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Fotografia: Chris Diewald // Flickr Creative Commons.