Poucas leituras me satisfazem tanto quanto aquelas que me incomodam.
Pude perceber isso com mais clareza em uma de minhas últimas leituras, o romance policial & aventureiro “A Última Expedição”, de Olivia Maia.
Policial, só no gênero. Não é daquelas histórias sobre detetives ou policiais salvando o mundo, mas tem mistério, suspense, perseguição e investigação. Troque os detetives de sobretudo e chapéu por um grupo de aventureiros falidos, o crime a ser resolvido pelo sumiço de um médico e o cenário urbano pelos mais rústicos e ermos cenários na Bolívia.
Como a própria Olivia resumiu: “Um médico gringo que desapareceu em algum país vizinho, enquanto pesquisava alguma planta estranha. Um grupo de degenerados brasileiros contratados para encontrar o pesquisador e um empresário cheio de segundas intenções”.
Aliás, nesse texto ela também conta como foi o processo de escrita desse livro e a viagem para a Bolívia, onde ela foi perseguir cenários e personagens para a história e (quem sabe) encontrar o médico irlandês desaparecido.
O que importa, no entanto, mais do que a história que não vou contar muito para não estragar as surpresas do livro, são as sensações que ele me causou.
O que chamou a atenção de cara foi a escrita de Olivia: frases que terminavam pela metade, palavras que ficavam gritando justamente pela sua ausência, no que pode parecer a alguns um descuido na revisão, mas que, na verdade, constituem um trabalho cuidadoso da autora em construir uma narrativa baseada em lacunas. É uma história cheia de mistérios, ué! Logo, é sobre algo que não está presente, sobre o não-contado, o não-dito.
O raciocínio constantemente interrompido na narrativa serve para lembrar o tempo todo que há algo faltando; algo que ninguém considerou, que ninguém pensou ainda. Mais do que isso, é um convite. É como quando alguém está falando e faz um suspense para falar a palavra seguinte. Dá vontade de? Isso, de completar.
Comecei a perceber que eu estava me esforçando para completar essas lacunas. De tentar raciocinar junto com o Estevão, o protagonista, ou então tentar pensar além dele, mesmo não dispondo de mais informações do que ele mesmo tinha.
Era isso: eu estava, de fato, participando da expedição. Eu era um dos membros do grupo de Estevão. Também era meu trabalho descobrir onde estava o médico desaparecido, saber por que ele desapareceu e por que queriam encontrá-lo.
O livro não me deu nenhuma resposta fácil. Eu tive que suar para buscá-las. É como se a autora tivesse colocado o jogo no hard – e me colocado não como espectadora da aventura, mas dentro dela.
Não poucas vezes, durante a leitura, percebi que estava sem fôlego. O ritmo da narrativa é acelerado, o raciocínio vai se atropelando, cortando palavras, deixando buracos. Nunca estive em um lugar de altitude, mas posso dizer que foi em “A Última Expedição” que mais perto cheguei dessa sensação. É aflitivo, cansa. E a poeira, o frio, as lonjuras, é tudo muito palpável na história. Em cada detalhe do livro havia o esforço de me convencer que eu estava nos altiplanos bolivianos. E funcionou.
Isso me fez pensar em tantas outras narrativas que me conquistaram porque deixaram comigo parte do esforço de construir a história. Leituras que me deram trabalho, que me incomodaram, que me deixaram desconfortável em algum nível.
Lembro também de George R. R. Martin e sua forma de conduzir a história sem a preocupação de agradar o leitor ou de tornar as coisas fáceis para quem lê. Mas o grande incômodo de saber que ninguém está a salvo naquele mundo, nem seus personagens favoritos, é justamente o que parece ter tornado “As Crônicas de Gelo e Fogo” um sucesso.
Lembro ainda de uma fala de Alan Moore, a respeito de satisfazer as vontades do público: “não é o trabalho do artista dar ao público o que ele quer. Se o público soubesse do que ele precisa, ele não seria o público, seria o artista”.
Aliás como posso esperar ser surpreendida por uma história que seja exatamente o que eu quero?
Ler não é só juntar letrinhas, mas participar de algo – e se for de algo que me sacuda e balance minhas seguranças e certezas, melhor ainda.
Além disso, ler não precisa ser sempre um passeio em um campo florido. Às vezes é bom – e necessário – ser jogada no meio do nada, com a cara na poeira, em um lugar onde as pessoas mal falam português, à procura de um gringo desaparecido.
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As fotos que ilustram esse post foram tiradas pela própria Olivia, em sua viagem para a Bolívia. É incrível poder ver nessas imagens o cenário pitoresco que eu construí na minha imaginação :)
Na ordem: caminho para Coqueza e a vista do vulcão de Tunupa; salar de Uyuni, o maior deserto de sal do mundo; e a cidade de Sucre vista do mirante.