Sabe aquele momento de constrangimento tão devastador que você sente vontade de arrancar o próprio braço com uma mordida ou de bater a cabeça na parede até se esquecer daquela coisa vergonhosa que você fez ou falou? Pois é. Não faça isso.
Bati o crânio na parede com tanta força numa dessas ocasiões de constrangimento que, da fenda que se abriu na minha cabeça, saiu uma vergonha tão grande que tem até RG e CPF. Uma vergonha muito grande, sem dúvidas, mais alta do que muita gente que conheço. Por isso mesmo é tão difícil ignorar sua presença quando ela dá as caras em algum evento social.
E ela sempre chega por trás, com aquela voz de repreensão: “não acredito que você falou isso”. Na hora eu tento ignorá-la. Mas a safada fica me seguindo, reparando em todas as minhas falas e gestos pra jogar na minha cara depois. E só de saber que ela está ali, sentada na mesa de bar ou atrás de mim em um encontro ou numa festa, já fico toda atrapalhada, de tão nervosa que fico.
Vergonha tem uma mania irritante que é de chupar os dentes quando de repente fico calada, fazendo um estalo que me faz lembrar que ela está ali. Aí vou fazer o quê? Invento de falar qualquer coisa só pra não ter que ouvir o silêncio dela, o que não raras vezes acaba sendo minha perdição. “Nossa, era melhor ter ficado calada, miga”. E então abre um sorrisinho maligno que nenhum vilão de novela até hoje conseguiu esboçar.
E o olhar dela? Nossa. Vergonha tem as pálpebras meio pesadas e cílios tão longos que, quando ela pisca, soa como se estivesse batendo palmas. O assustador é que ela consegue ficar um tempão sem piscar, com aquele olhar de “estou te julgando”.
Mas nada é pior do que depois que vamos embora – e ela sempre me acompanha até em casa. Quando ficamos a sós, ela faz questão de me recordar, com detalhes, das bobagens que falei, do papel de ridícula que eu fiz e da reação dos outros aos meus momentos constrangedores. E eu tenho que ficar ouvindo tudo, querendo derreter de tanto arrependimento de existir.
Vergonha não me deixa esquecer de nadinha. Estou lavando louça e PÁ, ela vem: “foi legal aquela hora que você confundiu o nome da Sílvia, hein?” ou estou escrevendo e ela fica olhando pra minha tela como se fosse ficar caladinha, até que PAM, chego a levar um susto: “e aquela hora em que você foi dar um beijinho, achou que a outra fosse daquelas que dão dois, foi dar o segundo pra pessoa não ficar no vácuo mas quem acabou ficando no vácuo foi você? Haha”. Nem quando estou cagando ela me dá uma folga.
Mas depois de um dia ou dois, fico realmente sozinha. Vergonha some. Procuro ela em todos os cômodos e até chego a me lembrar de algum evento constrangedor em voz alta só pra ver se ela aparece, mas nada. Alívio.
Às vezes passo dias sem vê-la. Chego até a esquecer de seu rosto, da sua risada ou da dor de barriga de nervoso que me dá quando ela começa a me julgar. Mas sei que quando ela aparece é horrível e tudo que vou desejar é que ela vá embora, em um ciclo sem fim de encontros e desencontros.
Mas um dia pensei: não precisa ser assim.
E se, ao invés de me incomodar com sua presença, eu receber Vergonha com carinho? E se quando ela estiver me atormentando em casa, eu fizer um café pra ela, para tomarmos juntas enquanto ela me conta as vergonhas que passei no dia?
Resolvi então me reconciliar com Vergonha.
Marquei um encontro com amigos, mas era Vergonha que eu queria que aparecesse. Funcionou. Ela deu as caras assim que tentei soltar a primeira piada da noite, usando uma referência que ninguém conhecia.
Assim que ela apareceu, pedi licença e puxei ela pra um canto; o que a surpreendeu, já que era a primeira vez que eu não a ignorava.
“Que bom que você veio. Só queria que você soubesse que quero ficar de boa com você. Eu estava pensando e acho que não tenho motivos para te achar irritante e sofrer tanto com a sua presença. Não vou conseguir me livrar de você, pelo jeito. Então, se vou ter que conviver com você pelo resto da minha vida, que pelo menos essa convivência seja agradável. O que acha?”
Aqueles olhos que sempre carregavam julgamento agora estavam cheios de lágrimas. Peguei Vergonha mesmo de surpresa.
Então a abracei, e ela correspondeu ao abraço me apertando com força.
O abraço foi tão forte que comecei a sentir algo estranho. Abri os olhos e me surpreendi: eu a estava absorvendo durante aquele abraço. Vergonha estava voltando pra dentro de mim.
Espero que lá dentro seja confortável pra ela, porque, pelo menos pra mim, assim está bem melhor. Carregar Vergonha não precisa ser um peso.
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Das vergonhas que passo na vida.
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Fotografia: James Vaughan // Flickr Creative Commons.