Imagine quatro paredes à sua volta. Não as da sua casa ou as do seu trabalho, mas as de um lugar ainda menor. Pode colocar nesse espaço alguns móveis e objetos que lhe são familiares, só para não ficar vazio. Mas tenha em mente que esse diminuto espaço é tudo o que você tem, é o limite da sua vista, é a sua própria existência. Esqueça por um instante que você pode sair desse pequeno espaço quando você quiser, afinal, não quero que depois me acuse de tentar manter você em cárcere privado. Mas tente ficar ali dentro pelo tempo que você puder.
Você deve imaginar que nesse espaço limitado não há muito o que fazer. Que assim que você passar um dia, uma semana, talvez um mês ou dois, olhando para essas mesmas quatro paredes e começando a se acostumar com o ambiente, talvez aquela mesa que antes você achava insuficiente para receber os amigos para um jantar agora lhe pareça enorme. Não é como se ela tivesse crescido de repente, mas ela toma boa parte do espaço onde você vive, logo, é grande demais. Você também está maior, não porque tenha acordado gigante de um dia para o outro.
Tamanho é só uma questão de referencial. Você também se sentiria encolhendo se fosse jogado numa sala maior do que qualquer uma em que já tenha pisado na sua vida. Fica fácil sentir-se grande quando se está cercado de coisas pequenas, não é? Tente se lembrar dessa sensação depois, mas agora quero que venha comigo. Sim, pode sair desse espacinho onde ficou em confinamento. Quero te apresentar a algumas pessoas.
Primeiro a Sílvia. Ela conseguiu o que a maioria das pessoas na civilização moderna capitalista deseja: trabalhar com o que ama. No seu caso, é falar sobre roupas, tendências, os “must-have” de quem tem bom gosto. O que ela mais gosta disso é o pouco esforço que isso exige, já que basta falar da sua própria vida, dos seus próprios gostos, das suas viagens inesquecíveis para o exterior, da decoração que está aprontando para seu apartamento novo.
Sílvia ama as hipérboles e superlativos tanto quanto os brindes que recebe das marcas com as quais faz suas “parcerias”. Não é o suficiente dizer que uma bolsa é bonita. Ela precisa dizer que é maravilhoooosa como quem diz que é algo que dará sentido à sua existência. Não basta mostrar o quanto um look é fashion, ela vai dizer que é tudo, que é capaz de mudar a sua vida. E ela vai rir loucamente enquanto tempera as suas dicas com muito exagero, porque ela precisa jogar o astral lá pra cima! Uma exclamação só? É pouco!!!!
Tente entender que ela é uma mulher intensa. Ou pelo menos é com intensidade que ela enxerga as únicas coisas que consegue ver sob os seus holofotes: sua própria vida e as coisas que ela consome. Deve ser difícil enxergar outras coisas com as luzes viradas pra lá. Vamos aproveitar enquanto ela tira mais fotos na frente do espelho para visitar outro personagem.
Quero que você conheça o Wilson. Um homem de grandes ideias, ou pelo menos é o que ele diz no seu currículo profissional. Passa em média 14 horas por dia no trabalho, cultivando suas ideias geniais para vender sabão em pó, bebidas alcóolicas e lâminas de barbear. Sua estante de prêmios, concedidos por outras pessoas exatamente iguais a ele, atestam que ele é mesmo um grande criativo, ainda que fora de seu mundo ninguém saiba sequer seu nome.
Talvez ele tenha dificuldade para perceber que é obcecado pelo seu trabalho, porque, para ele, seu trabalho é praticamente a totalidade de sua existência. Por isso ele não se importa em virar mais uma noite no escritório em busca da próxima grande ideia. E ele o fará com tal importância que é quase como se pessoas fossem morrer se ele não encontrasse a solução para aquela campanha de biscoitos de aveia. Sim, ele teve uma boa ideia que sabe que vai atingir o objetivo de comunicação do cliente. Mas não é o suficiente. Ele quer algo que mude a vida das pessoas, que decida o rumo da humanidade, que renda prêmios, mais prêmios. Ele faz a equipe ficar acordada, a base de pizza na madrugada, até que ele a alcance.
No final do dia, que pode ser perto da hora do almoço, já que seu relógio não pode ser comparado com o das pessoas normais, ele voltará para casa em seu enorme jipe, por ruas abarrotadas de carros que ele mesmo ajudou a vender e vai estacionar em uma vaga que quase não o cabe.
Agora conheça Matilde. É, ela parece desanimada. Acabou de levar um “não”, o que foi a cereja do bolo de bosta que ela acredita ter se tornado sua vida. Ela sente que o fracasso tem a perseguido com muito mais frequência do que o restante da humanidade. Afinal, já é a terceira carreira na qual embarca e ainda não conseguiu decolar.
Ela enviou o manuscrito de seu livro sobre viagens para uma editora, que após algumas semanas, enviou de volta sua carta de recusa. Foi o suficiente para a vida de Matilde desabar. Não que ela tivesse tentado em outras editoras, mas, ela se perguntava, por que as coisas não podiam ser mais simples? Talvez pelo fato de não ter que se preocupar com o aluguel, já que o apartamento onde morava era seu, ou com segurança profissional, pois frequentemente recebia convites para voltar a dar aulas, aquele “não” tornou-se um problema gigante.
É claro que o “não” só está pesando sobre seus ombros e fazendo-a ficar tão pra baixo porque Matilde acredita que ele significa uma recusa a ela como um todo; um atestado de seu fracasso que ela teria que esconder daqueles que faziam com que ela se sentisse tão pressionada para alcançar logo o sucesso & plenitude, embora ninguém de fato estivesse preocupado com sua carreira ou com os pequenos contratempos que ela tivesse no caminho. Mas ela não conseguia ver isso. Viu apenas que seu cachorro pegou pulgas. NADA dá certo pra mim, ela pensa, inconformada.
Por último, conheça Aleixo. Ele não é nenhuma celebridade e sua vida também está longe de ser perfeita, mas ele gosta bastante do discurso das “recaldadas”. Vez ou outra ele reclama dos invejosos que estariam desejando o seu fracasso simplesmente por ele ter tudo que essas pessoas, na verdade, mais gostariam de ter. O seu abdômen dividido, o seu cargo, o seu carro, as suas relações com pessoas incríveis, o seu status social.
Não é como se ele não sentisse inveja de ninguém, o que ele convenientemente gosta de esquecer quando reclama do famigerado recalque. Achou uó quando aquele seu colega de faculdade que achava um retardado conseguiu ser promovido para o cargo que ele sempre sonhou em ter. Sente até hoje uma certa raivinha daquela conhecida que consegue o mesmo reconhecimento entre as pessoas sem fazer tanto esforço quanto ele. E como inveja o cabelo do Sérgio, céus!
Ainda assim, seu discurso contra os invejosos é inabalável. Quem ouve até pensa que há uma legião de recalcados no pé de Aleixo. Mas não é a quantidade de invejosos que ele atrai que é o caso aqui; mas sim da importância exagerada que Aleixo dá a si mesmo e à sua vida, acreditando que ela é interessante e bem-sucedida o suficiente para que outras pessoas cheguem a desejar o seu fracasso. O que Aleixo não sabe é que ninguém liga.
Não parece, mas Aleixo, Matilde, Wilson e Sílvia têm muito em comum. Você deve ter percebido o quão autocentrados são esses personagens que você acabou de conhecer. Isso, sem dúvidas – e parabéns pelo seu poder de observação afiado. Mas os quatro têm em comum uma percepção distorcida do tamanho e da importância que cada um tem em seu próprio mundo. E é justamente esse mundo que eu queria te mostrar.
Você certamente se lembra do espaço apertado do início da nossa conversa. De como as coisas parecem maiores se colocadas perto de coisas pequenas. Do quão grande você vai se sentir se estiver em um lugar pequeno.
Nossos novos amigos vivem em um lugar parecido, e é por isso que dão a si mesmos e a coisas banais uma importância tão grande. Dentro da bolha apertada do mundo que escolheram para viver, eles são gigantes.
No grande esquema das coisas, eles – e nós – não são centrais tampouco essenciais, embora, dentro da bolha, eles ocupem boa parte do espaço. Em um espaço tão pequeno, qualquer problema vai parecer o maior do mundo, qualquer trabalho vai parecer o mais importante, qualquer um vai se sentir o centro do universo.
Mas talvez seja a nossa vontade de nos sentirmos mais importantes ou maiores que nos faça querer viver nessas bolhas ou nos acomodar naquelas que já nos cercam. E quais são essas bolhas que habitamos? Esse espaço tão pequeno que nos faz perder a medida das coisas, a medida de nós mesmos? A nossa cidade? O mercado? Nosso círculo de amigos? A internet?
E, se tamanho é uma questão de referencial, a gente só vai ter noção da nossa verdadeira medida se saírmos das nossas bolhas umbilicais e encararmos uma perspectiva mais realista.
Isso é para que não esqueçamos que, no plano geral, todas as pequenas merdas cotidianas que nos afligem, inclusive nós mesmos, não são, afinal grande coisa. Sem exagero.
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Fotografia da capa: Kelly Criscuolo-DeButts // Flickr Creative Commons.