8 de março, e lá vamos nós

Eu queria escrever sobre o Dia da Mulher? Não.

Primeiro, porque já escrevi uma vez e pra mim é o suficiente.

Depois, porque cansa falar a mesma coisa todo ano, de ter uma data específica para fazer um tipo de Revisão Telecurso 2000, um supletivo, e tentar resumir tudo o que todas as feministas falaram o ano inteiro até babar. Sem falar na pressão de não deixar essa data passar sem promover uma conscientização sobre os direitos da mulheres, como se fossem dar atenção ao que falamos só porque é 8 de março. Mas não, não vão.

E aí entra o terceiro motivo que me dá vontade de fugir deste planeta no Dia da Mulher: porque eu sei que vão despejar, em um dia só, um monte de besteiras, piadas e clichês fantasiadas de “homenagem”, justamente o tipo de coisa que a gente tenta mostrar o ano inteiro que é errado, que é machista, que é escroto. Aparentemente machismo no Dia da Mulher é a rabanada do Natal ou o ovo de chocolate da Páscoa: não pode faltar. E se for para responder e apontar cada mensagem ou atitude equivocada que acontece todo 8 de março, a gente não faz mais nada da vida.

E, por último, não queria escrever porque caíria na repetição. Sinto que o importante sobre esta data já foi escrito por gente mais competente do que eu para abordar essas questões. As coisas que eu teria para escrever seriam justamente aquelas que as feministas já estão peludas de falar 24 horas por dia, 7 dias por semana. Não teria nada a acrescentar.

Mas aí eu, que cago para coerência, resolvi quebrar a minha meta de não falar sobre o Dia da Mulher este ano.

Topei dar uma entrevista sobre as “homenagens” problemáticas da data, que pode ser lida aqui. Óbvio que eu já sabia que a jornalista colocaria apenas um trecho da minha fala, mas acho que as minhas respostas terem sido bravas (motivadas pelo cansaço que dá falar sobre esse mesmo assunto etc etc) contribuíram para que só uma fosse escolhida (risos). Então resolvi postar as minhas respostas na íntegra para já ficar bem claro o meu posicionamento sobre as merdas que a gente aguenta em um dia que supostamente seria sobre as lutas das mulheres mas que (surprise!) foi transformada em mais uma oportunidade para mudar de assunto e falar sobre o nosso encanto, beleza e bla bla bla.

Espero que não entendam isso como uma crítica à jornalista, pois eu curti de verdade a matéria. Acho que foi muito boa no que se propôs a discutir. E vocês devem imaginar o tipo de comentário que estão deixando lá, agredindo a jornalista simplesmente por falar o óbvio, né?

facepalm

– Por que o Dia Internacional da Mulher foi criado? Qual era a sua intenção?

Dia da Mulher surgiu como uma data de protesto, liderada por operárias, o que é muito emblemático: em sua origem está o grito contra a dominação burguesa e masculina.

– Por que uma data como essa, de protesto, se transformou num dia tão banal, de presentear as mulheres?

O que é que o capitalismo não sequestra para transformar em uma data de consumo, não é mesmo?

– Você acha que, no 8 de março, a suposta gentileza de dar presentes para as mulheres é, na verdade, uma atitude machista?

Não necessariamente. Pode ser uma ingenuidade, ainda que, mesmo sem maldade, a pessoa esteja contribuindo para esvaziar o sentido da data. É importante retomar a importância desta data, de luta pelos direitos das mulheres, justamente para conscientizar as pessoas de que o Dia das Mulheres não existe para dar flores e presentes, nem para homenagear a “beleza” e a “feminilidade”. O machismo é muito maior do que os presentinhos do Dia da Mulher.

– Que atitudes você acha que são ofensivas às mulheres nesse dia? Existe alguma homenagem que seja aceitável?

As atitudes ofensivas às mulheres no Dia da Mulher são as mesmas ofensivas em todos os outros dias do ano. Só pra citar alguns exemplos: tentar estabelecer um ideal de mulher, ainda que elogiosamente, é violento porque exclui um universo de mulheres (as não-mães, as fora do padrão de beleza, as negras, as gordas, as mulheres trans*); colocar constantemente a mulher no papel de enfeite, como se só existíssemos com a função de ser bonita; invadir o espaço da mulher; ser condescendente e invalidar o que a gente diz, quase como se mulheres fossem crianças que não devessem ser levadas a sério; sem falar na violência, nos atos e discursos cotidianos que reforçam uma cultura que torna o estupro aceitável, no racismo, na discriminação no mercado de trabalho, na representação estereotipada na mídia, etc. Enfim, não é muito difícil imaginar o que seja ofensivo.

Agora, essa pergunta de que homenagem seria “aceitável” dá a impressão que quem questiona essas homenagens são ditadoras intolerantes e que quem faz as “inocentes” homenagens é quem está sendo oprimido por não se adequar. E não é assim. Não existe alguém reprovando e reprimindo violentamente as homenagens ofensivas do Dia da Mulher; pelo contrário, são essas homenagens que nos diminuem violenta e sistematicamente, não sozinhas, mas como parte de um todo – um todo machista, de dominação e ódio às mulheres.

– Bombons, rosas, mensagens… Tudo isso é condenável? Como deveria ser o jeito correto de celebrar o Dia Internacional da Mulher?

Acho engraçado como as pessoas parecem mais preocupadas em não serem “condenadas” com a homenagem errada do que darem atenção às questões que REALMENTE importam no Dia da Mulher. Como se fossem as feministas que tivessem criado um problema ao dizer que não queremos a rosa, mas sim acabar com um sistema que nos oprime, nos diminui, nos nega humanidade e nos mata. Tenho que dizer que o problema não é rejeitar essas homenagens, o problema é o que essas homenagens estão tentando ocultar. E discutir que tipo de presente pode ou não pode, qual é o jeito “certo” de homenagear as mulheres nesse dia é continuar fugindo das questões que realmente deveriam ser discutidas nessa data.

A nossa luta não é para definir como “celebrar” o Dia da Mulher. A nossa luta é por direitos básicos e fundamentais, como a autonomia ao nosso próprio corpo que as leis (feitas por homens) nos negam historicamente, nos lançando para o risco de aborto ilegais que matam mulheres, especialmente mulheres negras e pobres. A nossa luta é por direitos trabalhistas, é pela presença da mulher na política, é pelo espaço público que também nos é negado quando somos acuadas por assédio disfarçado de “cantada”. A nossa luta é pelas mulheres trans* massacradas diariamente por uma sociedade transfóbica que lhes nega humanidade. A nossa luta é para quebrar o padrão de beleza que nos aprisiona, os papéis de gênero que nos limitam, os discursos onipresentes que validam a violência sobre nossos corpos.

O debate que queremos colocar na mesa para nós é uma questão de vida e morte, não um debate que se restringe ao “jeito certo de celebrar o Dia da Mulher”.

– Você concorda que muitas coisas ainda devem mudar para que as mulheres possam, efetivamente, comemorar com um dia específico no ano?

Melhor do que poder comemorar um dia específico no ano é a possibilidade de ter a vida respeitada integralmente, todos os dias do ano e em todos os anos depois dele.

Notaram como as minhas respostas são papagaiadas dos discursos que outras feministas já defendem o ano inteiro? Achei que eu mesma seria um bom exemplo do que escrevi no meu texto de ontem. Tanta preocupação em estar afinadinha com um discurso que os outros não ouvem. Se houvesse um vestibular feminista, acho que eu passaria com essas respostas. Mas é isso que importa? Ter as respostas certas? Usar as palavras certas?

Eu não quero ter certezas.

Mas sei que estou cansada desse eterno dejá-vu. As mesmas merdas de sempre, as mesmas respostas de sempre. Como em uma cruel imitação do filme do Bill Murray, estamos presas em um eterno Dia da Marmota – mas que por aqui acontece no dia 8 de março.

Fotografia da capa: Tom Simpson // Flickr Creative Commons.


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