[Seção de Cartas] Escritora reclusa, endereço SP

O leitor R.O. me mandou a seguinte cartinha:

Oi Aline! Sou leitor do seu blog e fã de tudo que você escreve… Gostaria que você escrevesse, se possível, sobre a sua mudança para São Paulo… seu olhar sobre a cidade e sobre as pessoas… Um grande abraço!

Confesso que me surpreendo um pouco quando percebo que as outras pessoas se interessam por essas coisas da minha vida – talvez até mais do que eu mesma. É aquela típica situação de “e as novidades, Aline?” e eu ficar meio sem jeito, porque, olha, nem aconteceu nada não, imagina, nem tenho novidades, novidades tem você que agora está trabalhando na agência x, quiéisso, novidades tem você que teve um filho, novidades tem você que agora tá solteira, né? Me conta tudo! – e assim estabeleço um roteiro para que a conversa passe longe do que eu considero a pequeneza da minha vida, o que costuma deixar os amigos bravos quando eu não conto sobre algo que eles consideram importante saber, como eu ter me mudado para São Paulo, ou organizado uma coletânea de contos, ou aparecido na TV, ou ter sido figurante em um filme sobre zumbis (embora não tenha sido como zumbi, uma pena), ou ter pego algumas aulas de arco-e-flecha, ou oferecido o meu DNA para experiências em uma universidade guatemalteca, que eu não sei explicar muito bem, mas que eu espero sinceramente que não seja para criar um novo vírus ou arma biológica. Muita gente só descobriu que eu ia morar em São Paulo quando de fato eu já estava aqui, enquanto uma boa parcela passou a achar, por algum motivo que eu nem suspeito qual seja, que eu na verdade estava morando numa cidadezinha na Argentina. “Como assim você muda pra São Paulo e não fala nada?” E eu realmente não falei, mas só porque não queria incomodar alguém com a informação mínima de estar mudando meu travesseiro de lugar só uns mil quilômetros – se fossem mais, quem sabe eu até mandasse um e-mail avisando. Não que eu não ache São Paulo grande coisa. É grande e é coisa. Imagine o impacto dessa cidade para uma pessoa como eu, que vim da roça – uma roça desenhada por Lúcio Costa, é verdade, mas uma grande cidade de interior onde todo mundo se conhece e mora no meio do mato. É claro que eu já tinha vindo a São Paulo antes de vir para morar e que era completamente diferente do que eu imaginava, que poderia ser definido não como uma cidade, mas como o cenário de uma ficção científica futurista cyber punk. Não era nada muito além da minha imaginação (uma pena), mas era um bocado impressionante comparado ao que eu estava acostumada a viver como cidade. Não posso falar da grande metrópole de arranha-céus, barulho, pichação, poluição e de um monte de gente falando igualzinho ao Luciano Huck que quem é de fora deve imaginar que sejam as coisas por aqui, porque o recorte da minha experiência é bem diferente. Primeiro, porque eu vim para continuar trabalhando em casa (isso mesmo, trabalho escrevendo); não preciso pegar trânsito, nem metrô lotado, nem reclamar da dificuldade de chegar no trabalho todos os dias. O metrô daqui eu acho lindo, um sonho, gosto mesmo, mas talvez porque eu tenha o privilégio de não precisar encará-lo como uma obrigação – uso o metrô nos meus deslocamentos recreativos e sempre evitando os horários em que ele fica periclitantemente lotado. Então como não amar? Já fico impressionada de forma bastante caipira de conseguir chegar em praticamente todos os lugares que eu preciso com o Metrô de São Paulo, ao contrário de Brasília, onde o metrô passa só numa metade da cidade. Aquilo ali, francamente. Mas, como eu ia dizendo, a minha experiência em São Paulo é um tanto diferente do convencional, o que pode te decepcionar. A São Paulo que eu vivo não é o mesmo das pessoas legais. Quando conto que estou morando na Vila Maladeira (aliás, haja pernas para morar nesse lugar), as pessoas já vêm com “nossa, que legal! Bairro boêmio, né? Você deve viver nos barzinhos!” Aí eu sorrio meio amarelo, porque bar é um dos lugares que mais me deixa desconfortável na vida (só não está em primeiro lugar porque existe salão de beleza, né). E sou do seguinte pensamento: para beber com amigues não é preciso sair de casa. Agora, comer uma comidinha massa, tomar um cafezinho porreta em um ambiente maneirinho, assistir uma peça, ver uma exposição, dar um passeio no parque, vandalizar algumas vidraças de banco, encher os pulmões com o revitalizante ar dos arredores do rio Pinheiros, aí tem que sair de casa, não tem jeito. Além do mais, eu gosto da minha casa. Tem wi-fi. Então quando me perguntam “E São Paulo, como tá? Aquela correria?”, nem sei bem o que dizer, porque será que a pessoa na verdade está só querendo confirmar que a cidade continua a loucura urbana que a consagrou? Algo como “E o Brasil, como tá? Aquele samba no pé? Aquele drible maroto?” Porque a correria está firme, pode ter certeza. Mas para os cantos de lá, aqui nem tanto, viu. Pra você ter uma ideia: de uma das casas ao lado do meu prédio dá para ouvir patos. Patos. Ou gansos, sei lá. E eles não tem hora pra grasnar não, ao contrário de buzinas que a gente sabe que vão aparecer nos horários mais tensos do trânsito. Aqui onde eu moro também não tem muitos prédios altos, como no centro. Aliás, uma coisa engraçada são os pichadores da Vila, que ficam bravos quando um prédio começa a ser construído nos arredores. O “você praça acho graça, você prédio acho tédio” é um clássico, mas já vi outros reclamando que iam tapar o horizonte dele ou até mesmo o simples e direto “prédio cu”. Só acho que se alguém odeia tanto prédio está meio que (só um pouquinho) na cidade errada. Vai pra Brasília, fera. Acho que você vai curtir aquele horizonte sem fim. Antes que achem que eu desprezo Brasília, é preciso dizer que ela bate São Paulo nos quesitos facilidade para encontrar pamonha boa e perto de casa, clima e endereços. Esses dois últimos, meramente pela facilidade de entender (porque também não são perfeitos). O clima, porque eu sei que lá vai ter uma época de enchente e acidentes no trânsito, e uma época de nariz sangrando e gente passando mal. E calor quase o ano inteiro. O clima daqui é tão difícil de entender quanto os logradouros. Ainda não sei se chove quando faz frio ou calor, se eu viro pra esquerda ou pra direita, se depois de uma semana com o céu fechado pode fazer sol no fim de semana, qual a rua que vem depois da Purpurina, qual o dresscode que eu tenho que adotar na próxima mudança de clima. E esse negócio de rua ter nome é um negócio que explodiu a minha cabeça com já tão deficiente sistema de localização. Gente, endereços com números. Antes eu sabia que, se eu estava na 308, de um lado eu teria a 307 e do outro a 309. Agora tive que criar um rap cheio de nome de gente que eu faço nem ideia de quem seja para memorizar os caminhos que eu preciso seguir nas ruas daqui. Puxado. Mas só São Paulo me deu tantas oportunidades de conhecer as pessoas maravilhosas que conheci aqui – mesmo as que vêm só de passagem. E que, no final das contas, são mais pessoas para me perguntar “e as novidades, Aline?” e eu responder que nem aconteceu nada novo, não. Imagina. Me conta você as suas.

Esse texto faz parte da Seção de Cartas do blog, em que um leitor me manda uma opinião e eu respondo com ficção. Participe também, mandando a sua cartinha que terei o maior prazer de publicar com uma resposta completamente inventada. É de graça e o anonimato será preservado. Escreva sua carta aqui.

Fotografia: Marcos Felipe, na Praça Pôr-do-Sol.


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