Muito me incomoda o discurso do talento. Mais do que evidenciar as habilidades de uma pessoa que faz muito bem alguma coisa, seja o que for, ele esconde uma lógica perversa que garante que as demais continuem fazendo muito mais ou menos essa mesma coisa, sem culpa. Ou talvez o que me incomode seja o tom místico desse discurso, onde o talento é a santa no altar. E não sou lá uma pessoa muito religiosa.
Talento, dom ou vocação: é comum ver as pessoas atribuindo essas palavras àquele sobrinho que faz umas pinturas maravilhosas, àquela moça que toca violão muito bem, àquele amigo que escreve textos geniais como se fosse a coisa mais natural do mundo. Nasceram para isso!, elas dizem, satisfeitas por terem encontrado a explicação perfeita para o fato de alguém conseguir fazer algo que elas não conseguem fazer tão bem.
Mas não: ninguém nasce com um super poder que irá se manifestar anos mais tarde em forma de um desenho, de um texto, como se fosse uma espécie de mutante com talento artístico no lugar de visão de raio laser. Não existe um deus distribuindo dons na fila da existência. Não há nada tão difícil que só possa ser feito por algumas poucas escolhidas pelo cosmos. Não há alinhamento dos planetas ou oração que torne alguém, de repente, especial para escrever um livro razoavelmente bom ou fazer uma atuação minimamente convincente.
Talvez muita gente se incomode bastante com isso, mas o que eu descobri é: qualquer pessoa pode fazer qualquer coisa. Talento não existe. Sabe o que existe? Vontade de fazer. Vontade de aprender. Trabalho duro.
Desenhar, escrever, jogar videogame, tocar violão, fazer o quadradinho de oito, assar um pão. Pode até ser mais difícil para algumas pessoas do que para outras. Mas é possível para todas.
Pintora de pergaminhos bengali // via Flickr Creative Commons
Por isso acho problemático o discurso do talento: ele acaba glamourizando atividades que não tem nada de mais. Coisas que podiam – e que bom seria – serem feitas por todas. Falando sobre a escrita, que é o quintal onde transito, percebo que cada vez mais gente vem escrevendo – e escrevendo bem. Fazendo blogs, lançando livros, experimentando, aventurando-se nas palavras. Há quem se incomode com a democratização daquilo que convém a algumas pessoas que seja sagrado, ou até quem diga que não, imagina, que não nasceu para isso, que não é digna, que não sabe escrever. Mas escrever não é algo inacessível.
É claro que ser acessível não significa que seja fácil. Mas ser difícil não significa que seja impossível. Há uma frase de Thomas Mann que um amigo meu adora citar que diz: “um escritor é alguém para quem escrever é mais difícil do que para as outras pessoas”. Faz todo o sentido. É uma pessoa que, não tendo nascido pronta para aquilo, precisa escrever igual uma desgraçada todos os dias, suar os dedos, jogar tudo fora, começar de novo, buscar referências, melhorar, escrever, escrever, escrever. É difícil. Porque escrever bem não é talento, não é dom. É trabalho.
O discurso do talento também é a muleta perfeita para a pessoa preguiçosa que só exercita o não tentar. Para aquela que diz que não tem talento para desenhar e ufa, está desculpada se nunca mais tentar pegar num lápis na vida, por mais que queira fazer ilustrações tão legais quanto as daquele cara que viu na internet. Quer desenhar? Desenhe. Juro que é algo que se aprende e pode ser mais fácil do que você imagina. Tudo se aprende. Tudo você pratica e pratica até dominar. Até ficar boa naquilo.
Outro grande amigo, professor de educação física, lembrou o quanto esse mito do talento é nocivo até no esporte. Ele critica a forma como as pessoas apontam para os atletas que se destacam mesmo em condições adversas, correndo com tênis velho ou treinando no campo de terra, para mostrar com isso que o talento consegue superar qualquer barreira. É cômodo poder acreditar que um craque surge por combustão espontânea ou que um recordista brota do chão: muito mais confortável do que investir em equipamentos, em infraestrutura, em garantir condições adequadas de treino para aquele atleta – para que mais e mais gente quebre recordes e não apenas as poucas escolhidas que “nasceram” com o dom subam nos pódios da vida.
Ninguém nasce pronto. Tudo se aprende. Por trás de algo bem feito existe alguém que deu muito duro para isso. Prefiro acreditar nisso: que é a gente que se faz. É isso ou aceitar que eu não presto para nada nessa vida.
Então, no dia em que o império do talento ruir – e quero estar lá para assistir –, os pilares que sustentam o altar dos veneráveis Santos Talentosos serão os primeiros a desabar. Com a queda dos muros altos do inatingível, vai dar para ver um horizonte de coisas novas a aprender, novas habilidades a experimentar. E espaço suficiente para ser ocupado por quem quiser entrar na brincadeira. Assim espero.
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Adendos necessários.
Assim como acho perverso o discurso do talento, acho perverso o “é só você querer que você consegue”; pois é um discurso que ignora uma realidade social onde poucas pessoas possuem muitos privilégios concedidos por uma sociedade desigual, racista e machista. Esses privilégios podem não ser o talento em si, mas concedem uma vantagem parecida. Não ignoro essa realidade, mas não escrevi sobre isso porque né? Não dá pra abraçar o mundo em um só texto. Achei que vocês soubessem.
Além disso, se fosse só querer, seria fácil. E o texto não fala isso.
Em tempo: eu escrevi tudo isso, mas eu poderia ter apenas dito: “Acreditar que o ‘topo’ está reservado apenas para os ‘habilidosos natos’ é uma forma de se sabotar“. Foi um amigo professor de educação física que escreveu, em um texto que dá continuidade à reflexão que propus aqui. Vale MUITO a leitura. Vai lá.
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Fotografia da capa: Di_Chap // Flickr Creative Commons