Eu não me acho bonita.
As pessoas ficam meio revoltadas quando eu digo isso. Como se eu estivesse dizendo um grande absurdo ou como se eu estivesse só querendo chuva de confete. Não, gente, não. Vamos apenas deixar de lado o fato de que você pode me achar bonita se quiser, afinal, você tem esse direito, por mais que eu discorde de você. Quero apenas dizer (e apreciaria MUITO que as pessoas começassem a entender) que não sou EU que estou errada por me achar feia – o que está errado é o mundo que me fez perceber isso.
Acredito que eu não esteja falando sozinha quando digo que não me sinto bem com a minha aparência e isso vem de longa data: muita gente sabe o que é se achar feia desde a adolescência, ou até mesmo antes disso. Mas chega um ponto na vida (para algumas é cedo, para outras é mais tarde, como foi o meu caso) que a gente entende que essa “beleza” que a gente NÃO TEM é uma construção social. Alguém chegou e resolveu dizer o que era bonito para conseguir vender mais shampoo, sutiã com bojo e cera de depilação. E o bonito, óbvio, é a pessoa com cabelo liso, peitos empinados e pernas depiladas.
Ainda que a pessoa seja a própria personificação de Afrodite (e, se for uma “deusa” correta para esses padrões de beleza bizarros do patriarcado, ela é branca, magra, alta, tem cabelo liso, é depilada, sabe se maquiar, é sexy sem ser vulgar etc etc), ela nunca será realmente “bonita”, porque não tem, sei lá, o cu rosa ou porque tem o mamilo escuro.
Beleza não é um troço real: são regrinhas inventadas para fazer a gente perder SEMPRE no jogo. Quanto mais essa “beleza” vai ficando impossível de ser atingida, mais podemos ficar sobre controle e melhor para quem lucra com essa noção do que é bonito e o que não é. E tem MUITO lucro envolvido nesse jogo.
No entanto, conseguir enxergar a opressão não significa estar automaticamente livre dela.
O padrão de beleza que o patriarcado usa para nos aprisionar é um negócio tão escroto que mesmo eu, que me considero feminista, continuo presa a ele. Por mais que eu saiba que ele é uma ilusão criada para nos oprimir, continuo me achando inadequada, feia. Não consigo me livrar.
Vez ou outra me olho no espelho e fico decepcionada com a desgraça que é minha cara, desejando que eu fosse outra, desejando ser bonita – e me sinto ainda pior quando vejo que eu simplesmente não consigo amar a minha aparência ou simplesmente cagar para essa armadilha que é o padrão de beleza. É muito ruim o sentimento de não ser “adequada” a um padrão, mesmo que a gente o rejeite – mesmo que a gente queira destruí-lo.
Já me perguntaram: “tá, Aline. Mas me diz: você quer ser bonita pra quê? O que você faria se você fosse bonita?”. E eu simplesmente não sei. É uma coisa que ultrapassa todos os limites da lógica. Porque quando eu tento racionalizar sobre o assunto, eu vejo que não faz sentido eu me sentir tão mal por ser inadequada a um padrão de beleza totalmente arbitrário concebido JUSTAMENTE para me deixar de fora dele, mas, ainda assim, esse sentimento não some. Nem esfregando com muito feminismo, com muita força.
Porque esse sentimento de inadequação é uma cicatriz que o patriarcado me deixou, bem no meio da cara, para me lembrar de que ele é tão mais forte do que eu, que nem sendo alguém que luta diariamente contra a opressão que ele promove, eu consigo me livrar totalmente de seu poder.
É por isso que não adianta virem me dizer mil vezes que eu sou “bonita”, porque, cá pra nós, eu não sou correta para o padrão de beleza, estou longe de ser e talvez nunca chegue a ser. Mas a questão é: por que eu deveria? Sei que isso soa altamente contraditório com o que disse até agora, mas eu quero poder ser feia. Quero que a “aceitação” que resolveria esse sofrimento não seja conseguir me ver como “bonita”, mas me ver como feia sem que isso me faça sentir dor. Que isso seja completamente irrelevante. Porque eu sou muito mais do que só a minha aparência.
Então ficamos dando essa importância toda à beleza, ainda que seja aquela beleza ~exótica~, incomum, fora do padrão, como se não fosse possível ser feia; afinal, aprendemos, desde cedo, que a principal missão de uma mulher neste planeta é ser bonita. Mas o que temos que picotar em mil pedacinhos não é apenas os padrões que estabeleceram para a gente poder ser considerada bonita, mas também essa imposição massacrante de que temos que ser lindas, nem que seja uma contra-beleza, uma beleza fora do padrão de beleza.
Ninguém precisa ser correta para os padrões de beleza (ou bonita, de qualquer forma que seja) para ter autorização para existir. É aí que eu percebo que, talvez, o que eu precise gritar para o mundo não é que eu sou bonita, mas que foda-se se eu não sou.
Eu não tenho que ser bonita.
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Fotografia: Mallory Johndrow.