Carta da leitora L.S.:
“Cara escritora, ao debater sobre a possibilidade de estar depressiva, um amigo me soltou a seguinte frase: ‘Antes que você seja diagnosticado com depressão ou baixa auto-estima, primeiro certifique-se de que, na verdade, não esteja cercado só por idiotas.’
Meu amigo copiou a frase da internet, claro. Mas a dúvida estava plantada. Será mesmo que o nosso bem estar está ligado às pessoas com quem a gente se relaciona? Será que todo o suicida, na verdade, estava apenas cercado de amigos sacanas? Será que descobrimos a causa da depressão? (Chupa Freud!)”
Querida leitora da Aline,
eu estava apenas de passagem pelo computador quando vi a sua cartinha aberta no e-mail dela e resolvi respondê-la. É, apesar de acharem que eu, por ser um gato, seria capaz apenas de me deitar sobre o teclado do computador ou arruinar todo o trabalho caminhando sobre as teclas, sei usar a internet e articular palavras melhor do que muito bípede por aí. Sou subestimado nessa casa.
Achei interessante o seu questionamento. Penso nisso às vezes, quando me deito no parapeito da janela e observo as pessoas lá embaixo, na rua. Que vida triste. Esse eterno e arrastado contar de horas até a próxima refeição. Você já se sentiu assim? Entediada até a morte com essa existência mesquinha e sem sentido? Eu já. Então eu mudo de posição para o sol bater na minha barriguinha e tudo fica bem de novo.
O seu amigo parece ter razão, ainda que copiando frases da internet. Dizem que reclamo demais, que sou muito pessimista e até (veja que injustiça) sistemático demais para um gato. Mas isso é porque estou cercado por idiotas. Veja a Aline, por exemplo. Se eu não for até ela com minhas exigências para lembrá-la de que ela deve colocar a minha comida, ela fica horas escrevendo na frente deste computador e se esquece completamente. Quando ela se levanta, tenho até que guiá-la, indo na sua frente, porque é capaz que ela se perca no caminho até a cozinha ou se distraia na frente da televisão. Me diga se isso não é deprimente.
Outra coisa que me tira do sério é ser carregado no colo. Ser abraçado. Achar que só porque sou menor em tamanho sou como uma criança humana, que pode ser carregada pra lá e pra cá, como se não tivesse vontade própria. Meu roomie Eugênio, por outro lado, não se importa e até gosta. Há gosto e gato pra tudo. Mas essa postura condescendente e paternalista dos bípedes me dá vontade de me jogar pela janela, se 1) elas não estivessem protegidas por telas; e 2) eu não caísse de pé, em uma aterrisagem perfeita à la Nadia Comăneci, que não me mataria e ainda me daria um puta trabalho de subir tudo de novo para chegar ao meu prato de comida. Então fico onde estou, para me poupar do trabalho.
Parece impossível uma existência livre dessas pequenezas irritantes do dia a dia. Mas a vida é justamente sobre não deixar que idiotas cansem a sua beleza. Ainda que você ame alguns desses idiotas.
É por ter todo tempo do mundo à disposição para pensar (e não precisar me preocupar com coisas banais como contas para pagar, chefe, trânsito ou as tretas do dia nas redes sociais) é que cheguei à conclusão de que não faz sentido existirmos por um breve período de tempo, em um planeta banhado por um sol que um dia vai explodir, em um universo que um dia também vai acabar, se não pudermos fazer coisas que nos dão prazer.
Então me dedico arduamente a uma tarefa que considero realmente importante. É um projeto pessoal, sabe. Todos os dias busco um pedaço da casa no qual ainda não deitei. Na pia do banheiro. No canto da estante de livros. Em cima da tampa do vaso sanitário. Em um pedaço de chão aleatório no meio da sala, bem no meio do caminho dos humanos. Eu simplesmente chego lá, escorrego devagarinho até encostar a barriga na superfície, ajeito meu corpo para ficar no formato de um retângulo perfeito (para melhor demarcar a área recém-inaugurada, claro) e tiro uma soneca gostosa.
Depois acordo e faço um bom alongamento, cuido das unhas na quina do sofá mais próximo e atravesso a sala apressadamente, como quem vai cuidar de negócios importantes. Procuro outro lugar novo para deitar e começo tudo de novo. No fim do dia, estou exausto. Então durmo longamente em cima da cama.
Pensando bem, apesar de eu reclamar muito, a minha vida é boa. E é muito boa porque é simples. Então, se eu posso dar um conselho a você para fugir da depressão é: seja um gato. Se não puder, adote um. Tenho certeza que, só de olhar para ele e para a forma despreocupada e leve com a qual ele encara a vida, suas preocupações vão parecer menores. Além do mais, está cientificamente provado que afagar os pelos macios de um gato leva qualquer problema para longe. Bem, talvez seja por isso que tentam me abraçar o tempo inteiro.
Um cheiro,
Aurélio.
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Fotografia da capa: Tom Page // Flickr Creative Commons