O gigante chegou atrasado para a batalha porque deixou o despertador no modo soneca para dormir só mais cinco minutinhos. Ele só acordou porque começaram a fazer muito barulho lá fora e ele quis saber o que era. Olhou pela janela, não entendeu muito bem, mas quis sair do mesmo jeito e fazer parte daquilo.
Quem estava lá fora, alguns feridos por tiros ou desnorteados por bombas, comemoraram a visão daquele vulto gigantesco emergindo no horizonte. Ele gritava: sem violência! Sem violência! Finalmente, sentiram-se protegidos, até invencíveis. Agora sim, o movimento ia dar certo. Todos ficaram orgulhosos e aliviados, porque com um gigante se unindo, ainda que avançando a passos cambaleantes de quem recém-despertou, como o pessoal lá do castelo continuaria ignorando suas reivindicações?
Mas sabe como são os gigantes, né? Temperamentais, até cabeças-duras. Esse gostou de ser aplaudido e tomou a frente do movimento. Agora, era por uma causa maior, uma causa do tamanho do gigante que marchava pela rua. Ninguém podia deter o gigante. E o gigante SABIA disso.
Para perder o controle, foi um pulo. Ou melhor, um passo de gigante. Um passo que logo começou a pisotear as minorias que estavam em volta: mulheres, negros, gays. Porque o gigante não se sentia representado por esses naniquinhos que com suas vozinhas pediam respeitinho e direitinhos.
O gigante nunca simpatizou com as lutas das mulheres, porque sempre achou que isso era falta de louça pra lavar. O gigante sempre achou que esse pessoal da bandeira do arco-íris estava querendo direitos demais. O gigante nunca se identificou com os índios e sempre achou que eles já tinham terras demais. O gigante, que sempre odiou preto e pobre, não mudaria de opinião só porque resolveu sair da caverna. O gigante estava acordado, mas não tinha mudado.
Quem antes comemorava o despertar desse gigante agora se lembrava de sua verdadeira face. Uma boca cheia de dentes que urrava e cuspia em quem era menor. Olhos que ficavam vermelhos de raiva apenas com a menção da palavra “feminismo”. Enormes dedos de salsicha que tomaram e quebraram a bandeira do movimento negro, fazendo vir à tona o racismo que nunca esteve adormecido.
Se deitado na cama de pijama, comentando na internet, o gigante já tentava calar as minorias, imagine agora.
Muitos passaram a temer o que o gigante ensandecido poderia fazer para calar e intimidar quem sempre foi oprimido, e a esses só restava acreditar que a fúria do gigante pudesse passar e ele, no final das contas, despertasse não só para gritos vazios de “sem partido!” e “contra a corrupção!”, mas para a desigualdade social, racial e de gênero que ele mesmo ajudava a sustentar em seus ombros de gigante.
Ou, a esses que temiam o gigante, só restava acreditar que ELES é que estavam dormindo. Porque esse monstro acordado fazendo tamanho estrago só podia ser um pesadelo.
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Nota da autora: sou dessas que acreditam que a informação pode mudar as pessoas, por mais que seja difícil e por mais que demore. Machismo, homofobia, transfobia, racismo, classismo não está no DNA de ninguém. Se eu não acreditasse que as pessoas podem ser educadas e que a sociedade pode sim mudar, eu seria feminista pra quê, né?
MAS (e é importante esse “mas”) não esperem que eu ache legal um movimento que virou OUTRA coisa e que vem, cada vez mais, ganhando contornos reacionários. É muito lindo esse tanto de gente querendo “mudar o país”, mas que não abre mão de seus preconceitos e privilégios, que faz questão de continuar machista, racista, homofóbico, transfóbico, classista e (o que é pior) de levantar essa “bandeira” nas manifestações. Não quero fazer parte disso. Se quiserem saber onde estou, já sabem onde me achar: do lado de quem, por ser diariamente oprimido, nunca conseguiu dormir.
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Fotografia da capa: Barry // Flickr Creative Commons